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A dívida global asfixia o desenvolvimento e agrava a desigualdade entre países

Enquanto o mundo discute transições tecnológicas, mudanças climáticas e novas fronteiras geopolíticas, uma crise silenciosa e estrutural avança com efeitos devastadores: o peso insustentável da dívida pública em dezenas de países de renda baixa e média. Em 2025, quase metade da população mundial vive em países que gastam mais com o pagamento de juros e amortizações do que com saúde, educação ou políticas sociais. A promessa de desenvolvimento foi trocada por austeridade permanente. E, enquanto isso, os centros financeiros globais continuam lucrando com um sistema que alimenta a desigualdade em vez de combatê-la.

O endividamento não é um fenômeno novo, mas nas últimas décadas ele assumiu uma forma mais complexa, opaca e desigual. Após a pandemia de Covid-19, muitos países recorreram a empréstimos para financiar medidas de emergência. A alta nos preços de alimentos e energia, somada ao aumento das taxas de juros internacionais — especialmente após os ciclos de aperto monetário nos Estados Unidos e na União Europeia — tornou o serviço da dívida muito mais caro, sobretudo para os países do Sul Global.

De acordo com dados de instituições multilaterais, mais de 50 países enfrentam atualmente risco elevado de inadimplência. Em países como Zâmbia, Gana, Etiópia, Paquistão e Sri Lanka, a dívida tornou-se uma ameaça à estabilidade política e à segurança alimentar. Governos são forçados a cortar subsídios, reduzir investimentos públicos e limitar políticas sociais, tudo para garantir o pagamento aos credores. O resultado é a ampliação do desemprego, da pobreza e da desigualdade.

Ao contrário do que se pensa, muitos desses países não são excessivamente endividados por má gestão. O problema central está na estrutura da dívida global: cerca de 60% das obrigações externas dos países de renda média e baixa estão nas mãos de credores privados — bancos, fundos de investimento e gestoras de ativos — que operam sob lógicas puramente financeiras, com baixa disposição para renegociações. Esses atores não participam dos mecanismos multilaterais de reestruturação e, frequentemente, exigem retorno total, mesmo diante de crises humanitárias.

Os países de alta renda também mantêm sua influência por meio de instituições como o FMI e o Banco Mundial. Em troca de ajuda financeira, exigem planos de ajuste fiscal e reformas estruturais que, na prática, limitam a soberania dos países endividados. Em muitos casos, os pacotes incluem privatizações, liberalizações comerciais e cortes orçamentários que afetam diretamente a população mais pobre. A dívida, assim, torna-se uma forma de controle político e econômico.

Além disso, a arquitetura financeira internacional impõe uma lógica perversa: os países do Sul tomam empréstimos em moedas estrangeiras — principalmente dólares — o que os torna vulneráveis às flutuações cambiais e às decisões de política monetária dos países centrais. Quando o Federal Reserve (Fed) aumenta os juros, o impacto é imediato nos custos de financiamento global. No entanto, as decisões do Fed visam controlar a inflação interna dos Estados Unidos, sem considerar os efeitos colaterais nos países mais frágeis.

Esse cenário criou um paradoxo: os países que menos contribuíram para as grandes crises globais — como a mudança climática ou a instabilidade financeira — são os que mais pagam por seus efeitos. Enquanto isso, recursos que poderiam ser usados para mitigar impactos ambientais, construir infraestrutura ou garantir direitos sociais são desviados para o pagamento de dívidas acumuladas sob condições desiguais.

Há, no entanto, propostas emergentes para romper com esse ciclo. Diversos países e organizações da sociedade civil defendem a criação de um mecanismo global de renegociação da dívida, com participação dos credores privados e regras transparentes. Outra proposta é vincular parte da dívida a investimentos verdes ou sociais — por meio de trocas “dívida por clima” ou “dívida por educação” — criando incentivos para um financiamento mais justo e produtivo. Algumas experiências pontuais já ocorreram, como em Belize e Cabo Verde, mas ainda carecem de escala e vontade política internacional.

Também se discute a reformulação do papel das agências de classificação de risco, que frequentemente penalizam países em dificuldades e impedem soluções criativas. E há crescente pressão para que o FMI adote critérios mais flexíveis, considerando indicadores sociais e ambientais em suas avaliações.

A América Latina, com histórico de crises de dívida nos anos 1980 e 1990, voltou a registrar níveis críticos em vários países. A Argentina, mais uma vez em moratória parcial, é exemplo da recorrência dos ciclos de endividamento e crise. O Brasil, embora não esteja em situação emergencial, enfrenta limitações fiscais crônicas e continua pagando uma das maiores taxas de juros reais do mundo, em parte para manter a confiança dos mesmos credores internacionais.

A questão da dívida, portanto, não é apenas econômica. É também política, ética e estrutural. Um sistema que exige sacrifícios permanentes de populações empobrecidas, ao mesmo tempo em que protege os lucros de credores privilegiados, é um sistema que alimenta a desigualdade global. E enquanto essa lógica não for enfrentada com coragem e solidariedade internacional, o desenvolvimento continuará sendo um privilégio para poucos — e um sonho adiado para bilhões.

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