
O Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Agência Mundial Antidoping (WADA) se apresentam ao mundo como guardiões da ética esportiva. O discurso é o de preservar o “espírito olímpico” contra o uso de substâncias ilegais e de proteger a saúde dos atletas. Mas por trás dessa narrativa moralizante há uma trama muito mais complexa, onde interesses econômicos, geopolíticos e empresariais desempenham papel decisivo na exclusão de países inteiros das grandes competições. A politização do esporte não é novidade, mas nas últimas décadas ela se tornou mais sofisticada, travestida de zelo ético enquanto responde a pressões de blocos de poder e de conglomerados comerciais que lucram com a reconfiguração do mapa esportivo.
O caso mais notório é o da Rússia. Desde 2015, após revelações de um sistema estatal de doping, atletas russos foram proibidos de competir sob sua bandeira em Jogos Olímpicos e em campeonatos mundiais. O discurso oficial foi o de combate a práticas fraudulentas. No entanto, o banimento coincidiu com o auge das tensões entre Moscou e o Ocidente, depois da anexação da Crimeia. A punição esportiva não se restringiu a atletas flagrados, mas foi coletiva, atingindo milhares de esportistas que não tiveram qualquer relação com o escândalo. Isso evidenciou o uso da WADA e do COI como instrumentos de pressão política: uma forma de enfraquecer a projeção internacional de um país justamente no campo em que a Rússia investia pesadamente para construir prestígio global.
A seletividade também salta aos olhos. Enquanto a Rússia foi banida de forma sistemática, casos graves em outros países receberam respostas bem menos duras. Nos anos 1990 e 2000, escândalos de doping envolvendo ciclistas europeus de ponta, como no Tour de France, ou atletas norte-americanos de elite, foram tratados como questões individuais, e não como “sistemas nacionais de fraude”. Atletas punidos continuaram a ser promovidos por patrocinadores e, em alguns casos, voltaram a competir depois de suspensões curtas. A narrativa da “ética” mostrou-se, portanto, desigual: rígida contra adversários estratégicos, leniente diante de potências esportivas inseridas em grandes mercados consumidores.
O componente empresarial reforça essa assimetria. A exclusão de países como a Rússia abre espaço para a redistribuição de medalhas e visibilidade. Patrocinadores globais — empresas de material esportivo, transmissoras de TV, conglomerados de bebidas e tecnologia — têm interesse direto em associar suas marcas a atletas e delegações que personificam valores positivos para os consumidores. A ausência de países problematizados politicamente permite que empresas foquem em narrativas de “inspiração” e “resiliência” em torno de atletas de países mais integrados à economia global. O espetáculo se torna mais palatável para grandes anunciantes quando elimina personagens que trazem a marca da controvérsia.
Um exemplo eloquente ocorreu em Tóquio 2021, quando os atletas russos competiram sob a bandeira neutra do “Comitê Olímpico Russo”. O arranjo simbólico atendeu à exigência da WADA, mas preservou a presença de esportistas de alto nível que garantem audiência. O COI se viu diante de um dilema: excluir completamente a Rússia, com prejuízos esportivos e financeiros para o evento, ou permitir uma participação limitada que mantivesse o interesse televisivo e o apelo comercial. Optou-se pela segunda via, o que mostra que a decisão não foi puramente ética, mas também mercadológica.
A politização não se restringe à Rússia. Em Pequim 2008, antes dos Jogos, diversas organizações pressionaram o COI a excluir a China por denúncias de violação de direitos humanos no Tibete e pela repressão a dissidentes. O COI resistiu, mas deixou claro que a decisão foi menos sobre princípios universais e mais sobre o peso econômico chinês. Com um mercado bilionário de telespectadores e patrocinadores interessados em penetrar na Ásia, banir a China significaria um desastre financeiro. A ética foi relativizada em nome dos negócios.
Outro episódio ilustrativo foi a exclusão de Belarus em 2022, logo após o apoio de Minsk à invasão russa na Ucrânia. A justificativa foi política: punir um regime aliado de Moscou. Mas, diferentemente do caso russo, a Bielorrússia tinha pouca expressão econômica ou esportiva global, o que tornou a decisão muito menos custosa. Aqui, a lógica ficou evidente: punir países periféricos é mais simples porque não compromete receitas e ainda envia uma mensagem de alinhamento moral aos parceiros ocidentais.
A própria estrutura da WADA revela tensões de poder. O financiamento da agência vem, em grande parte, de governos ocidentais e do COI, o que gera suspeitas sobre sua independência. Há, ainda, a pressão de grupos farmacêuticos e laboratórios de biotecnologia, que veem no controle antidoping uma oportunidade de negócios. O setor lucra com o desenvolvimento de novos testes, substâncias de mascaramento e até suplementos “autorizados” que circulam num mercado de bilhões de dólares. Em muitos casos, as empresas que patrocinam atletas e seleções são também aquelas que investem em pesquisa e fornecimento de substâncias controladas, criando uma teia de interesses difícil de separar.
A história mostra que o esporte sempre foi campo de disputa política. Durante a Guerra Fria, boicotes olímpicos por parte dos EUA e da União Soviética transformaram competições em arenas de propaganda. Nos anos 1980, a exclusão da África do Sul do sistema esportivo internacional foi apresentada como punição ética ao apartheid, mas também respondia a pressões políticas e comerciais de um mundo que não queria associar suas marcas a um regime tóxico. Hoje, o padrão se repete: ética como justificativa pública, interesses econômicos e estratégicos como motor real das decisões.
O discurso antidoping e a moral olímpica não devem ser ignorados: é legítimo buscar competições limpas e preservar a saúde dos atletas. Mas quando se observa a assimetria de critérios, a seletividade de punições e o impacto comercial das exclusões, torna-se evidente que o campo esportivo é atravessado por lógicas que vão muito além da ética. O COI e a WADA são, ao mesmo tempo, árbitros de princípios e atores políticos que administram pressões de Estados, empresas e mercados.
O banimento de países em nome da moralidade esportiva, portanto, não é apenas uma cruzada ética: é também uma engrenagem de poder e negócios. Reconhecer isso não significa relativizar a luta contra o doping, mas entender que, como em outras áreas da vida internacional, o esporte é menos neutro do que parece. Por trás do pódio e do hino, há sempre o som abafado das moedas e dos interesses estratégicos.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
