
A posição firme da Europa contra qualquer alteração territorial que possa resultar da guerra entre Rússia e Ucrânia vai além da solidariedade com Kiev ou do alinhamento estratégico com os Estados Unidos. O ponto central é um temor profundo: se for aberta a porta para reconhecer mudanças de fronteiras pela força, toda a ordem política europeia pode ser colocada em xeque. A defesa da integridade territorial ucraniana é, portanto, também uma defesa preventiva da estabilidade interna do continente.
As teorias de relações internacionais ajudam a explicar essa postura. No realismo, a segurança dos Estados depende de reduzir riscos de desequilíbrio no sistema. Reconhecer anexações territoriais criaria um precedente de insegurança, pois encorajaria potências revisionistas a usar a força contra vizinhos. Já no institucionalismo liberal, a estabilidade vem da previsibilidade das normas. Se a regra de inviolabilidade das fronteiras — consolidada desde a Carta da ONU e, na Europa, reafirmada pelo Ato Final de Helsinque de 1975 — for quebrada, toda a credibilidade do sistema multilateral europeu se fragiliza. Por sua vez, a perspectiva construtivista lembra que identidades coletivas se sustentam em narrativas compartilhadas. Uma Europa que tolerasse a modificação de fronteiras pela força abalaria o próprio discurso que legitima sua integração e seu projeto de paz pós-1945.
O medo europeu tem raízes históricas. O continente já viveu o trauma das fronteiras móveis. O Tratado de Versalhes, em 1919, deixou minorias deslocadas e ressentimentos em diversas regiões. A dissolução da Iugoslávia, nos anos 1990, mostrou como disputas territoriais rapidamente se transformam em guerras étnicas. Mesmo dentro da União Europeia, ainda existem cicatrizes latentes: bascos na Espanha, flamengos e valões na Bélgica, corsos na França, escoceses e norte-irlandeses no Reino Unido, húngaros em territórios vizinhos como Eslováquia e Romênia. A aceitação de uma modificação territorial pela guerra na Ucrânia seria, para Bruxelas, como soltar o fio de um novelo que ameaça desenrolar todo o tecido europeu.
A experiência da Crimeia em 2014 é reveladora. Quando Moscou anexou a península, muitos governos europeus reagiram não apenas pelo ato em si, mas pelo receio de que grupos minoritários passassem a evocar o “precedente” para justificar secessões. O plebiscito organizado pela Rússia serviu de alerta: se aceito, poderia reforçar discursos separatistas internos, sobretudo em regiões com forte identidade linguística ou cultural distinta da maioria nacional. Por isso, desde então, a União Europeia manteve a posição de não reconhecimento, mesmo diante de pressões pragmáticas por normalização das relações comerciais.
Exemplos de outros continentes reforçam a preocupação. Na África, a regra da Organização da Unidade Africana — herdada pela União Africana — sempre foi a manutenção das fronteiras coloniais, por mais arbitrárias que fossem. A razão era clara: mexer no mapa poderia reabrir disputas incontornáveis. O mesmo raciocínio move a Europa: aceitar que a Rússia redesenhe as fronteiras da Ucrânia pela força significaria abrir espaço para que conflitos internos e demandas minoritárias ganhem legitimidade e pressão renovada.
A questão não se limita ao leste europeu. Países bálticos temem que russos étnicos em seus territórios passem a reivindicar maior autonomia com base em um “direito” de Moscou de proteger populações russófonas fora de suas fronteiras. Nos Bálcãs, a Sérvia poderia intensificar pressões para redesenhar fronteiras em Kosovo ou na Bósnia-Herzegovina. Na própria União Europeia, movimentos separatistas que hoje se mantêm contidos por um equilíbrio institucional poderiam ser revigorados pela percepção de que a Europa aceita mudanças territoriais se resultarem de fatos consumados.
Do ponto de vista da integração europeia, há ainda uma camada adicional. A União Europeia foi concebida como projeto de superação dos nacionalismos beligerantes. Aceitar uma mudança de fronteira obtida pela guerra significaria trair essa identidade fundadora. É por isso que Bruxelas insiste em apoiar a soberania e integridade territorial da Ucrânia como princípio inegociável, mesmo sabendo que, na prática, negociações futuras poderão impor concessões. A posição pública é menos sobre a Ucrânia e mais sobre a Europa: preservar a norma para que ela continue servindo de barreira contra divisões internas.
O dilema, contudo, é evidente. Se por um lado a Europa precisa rejeitar qualquer alteração de fronteiras para não abrir precedentes perigosos, por outro lado a realidade no terreno pressiona por soluções pragmáticas. A anexação da Crimeia parece irreversível, e as regiões ocupadas no leste da Ucrânia já funcionam de fato sob controle russo. A história mostra que congelar disputas territoriais pode evitar guerras abertas, mas não resolve tensões subterrâneas. Foi assim na Guerra Fria, quando fronteiras foram mantidas estáveis à custa de regimes autoritários que suprimiram identidades e minorias — uma estabilidade superficial que ruiu com o colapso da União Soviética.
Na prática, a Europa enfrenta uma escolha entre valores e realidade. Defende publicamente a inviolabilidade das fronteiras para conter riscos internos e preservar o sistema normativo que sustenta sua própria legitimidade. Mas terá de lidar com negociações que provavelmente consagrarão algum tipo de alteração territorial, ainda que disfarçada em fórmulas jurídicas criativas. A lição das teorias e da história é clara: a defesa rígida de princípios serve para manter a ordem, mas a estabilidade real só será alcançada quando os arranjos políticos conseguirem acomodar tanto os interesses dos Estados quanto as aspirações das populações.
A posição europeia contra mudanças de fronteiras, portanto, é menos um gesto de solidariedade a Kiev e mais um escudo contra suas próprias fragilidades internas. Ao sustentar a integridade territorial da Ucrânia, Bruxelas busca, antes de tudo, proteger a si mesma das pressões que poderiam ressurgir de um passado de fragmentações e guerras intestinas que ainda assombra o continente.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
