
O Tribunal Penal Internacional (TPI) surgiu como um marco — a criação de um mecanismo permanente capaz de responsabilizar indivíduos por genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. A ideia representava uma evolução do direito internacional: nenhuma liderança poderia agir com impunidade absoluta. Mas, embora a proposta continue relevante, seu funcionamento real revela fragilidades profundas — vínculos financeiros, influência de fundações e corporações, e uma arquitetura institucional vulnerável a capturas políticas — que comprometem sua função como fórum imparcial de justiça internacional.
Desde sua instalação, o TPI contou com o apoio de milhares de organizações da sociedade civil, especialmente no Sul global, como forma de tornar visível a impunidade estrutural. Africanos, asiáticos e latino‑americanos apoiaram a criação do Estatuto de Roma, convencidos de que ali havia um instrumento de justiça universal. No entanto, ao longo dos anos, a dependência institucional de financiamento externo, a influência de atores privados e as dificuldades em garantir total independência das suas estruturas começaram a gerar críticas crescentes.
Um primeiro ponto crítico é a questão do financiamento. Embora o TPI seja financiado majoritariamente pelos Estados membros, há uma tendência de que voluntários e parcerias externas afetem suas prioridades. Um estudo recente sobre a evolução orçamentária do TPI mostra que há uma “instrumentalização orçamentária” que favorece interesses dos países mais influentes. O mesmo relatório aponta que tal padrão “reflete sua posição como instrumento de Estados poderosos; consequentemente, a África torna‑se alvo desproporcional de processos penais” — o que compromete a percepção de imparcialidade.
Além disso, há fundações privadas ou redes de ONGs que desempenam papel relevante no ecossistema jurídico internacional, influenciando agendas de investigação, programas de vítimas ou mesmo capacitação de pessoal do TPI. Embora não haja sempre transparência total sobre esses vínculos, diversos autores alertam que a “privatização” da justiça internacional — via financiamento ou estrutura de ONGs que apoiam o tribunal — traz riscos de conflito de interesses e alinhamento a agendas ocidentais. Por exemplo, o mandato de assistência do Fundo Fiduciário para Vítimas do TPI (Trust Fund for Victims) foi criticado por operar antes mesmo de haver condenações, o que pode violar o princípio da presunção de inocência e comprometer o papel do tribunal como órgão jurisdicional.
Há ainda o problema da cooptação institucional: promotores, juízes ou oficiais do tribunal que antes ou depois de seus mandatos mantêm vínculos com entidades acadêmicas ou organizações financiadas por fundações privadas. Esses vínculos dificultam o estabelecimento de uma linha clara entre “agenda pública” e “influência privada”. Embora nem todos os casos sejam escandalosos, o acúmulo de tais situações gera um ambiente de suspeita, sobretudo por parte de países do Sul, que percebem o TPI como instrumento externo.
Outro aspecto relevante é a reação negativa de vários Estados africanos. Países como Burundi, Gâmbia, África do Sul já anunciaram ou ameaçaram se retirar do Estatuto de Roma, citando tratamento desigual e interferência ocidental. Quando entidades‑fundação, redes de ONGs e governos externos aparecem como protagonistas no ambiente que molda o TPI, cresce a percepção de que este não representa uma justiça universal, mas um jogo de poder global em que certas causas são priorizadas em função de agendas geopolíticas.
Importa ver que tais críticas não anulam a importância do TPI como ideal: responsabilizar indivíduos por crimes graves é necessário. O risco é que, se o tribunal for percebido como instrumento de um clube de países ou financiadores, ele perde sua legitimidade universal e torna‑se vulnerável à acusação de seletividade ou viés estrutural. Essa perda de legitimidade prejudica tanto vítimas quanto sociedades que procuram em mecanismos como este uma via de acesso à justiça internacional.
Em última instância, o TPI permanece como uma instituição relevante no plano normativo — mas a sua operacionalização exige reformas mais profundas: maior transparência de financiamento, maior diversidade de fontes de poder decisório, maior equidade entre regiões geográficas e afastamento claro de influências privadas que possam comprometer sua imparcialidade. Sem isso, a promessa de justiça global corre o risco de se transformar, inadvertidamente, em instrumento de interesses concentrados.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
