ISSN 2674-8053

O debate sobre secularismo na Índia: perspectivas e desafios

Secularismo é um tema central para entender as relações entre o Estado, a sociedade e as religiões. A complexidade dessa discussão é enorme e caracterizada pela multiplicidade contextual em torno do conceito secular. Nesse sentido, esse artigo propõe expor argumentos e perspectivas que cercam este debate na Índia, com especial enfoque nos intelectuais indianos, para que se possa analisar os acontecimentos contemporâneos do país e seus desdobramentos globais.

O que é necessário para definir um Estado secular? Esta questão tem um grande poder reflexivo, principalmente na Índia, que desde a construção de seu Estado-Nação-Moderno tem discutido intensamente o tema, dado o grande número de acontecimentos político-religiosos que afetam a estabilidade do país no âmbito interno e externo.

Antes de aprofundar a análise sobre secularismo, é fundamental localizar e contextualizar as origens desse debate. Destaca-se, para este fim, o período da dominação britânica no subcontinente indiano, em que a relação entre hindus e mulçumanos passou por momentos marcados por conflitos que foram estimulados pelo poder colonial. O sentimento de separatismo entre as duas comunidades tem como peça chave a estratégia britânica de “divide and rule”, já que os líderes do então império perceberam que esse conflito determinaria suas chances de sobrevivência na região. Nessa conjuntura, foi criado um ambiente de sentimentos antagônicos entre comunidades religiosas, que propiciou um dos eventos mais trágicos da história do sul asiático, a partição do território entre Índia e Paquistão.

O debate sobre a partição é pautado por três grandes expressões políticas; o nacionalismo, o imperialismo e o comunalismo. Nesta última força residem os desdobramentos mais complexos do debate sobre secularismo na Índia. Comunalismo é o nome dado ao processo de teor sócio-político que busca diferenciar as pessoas com base na religião, que instituem antagonismos entre comunidades religiosas. Trata-se da criação de identidades políticas baseada em identidades religiosas. No caso da partição entre Índia e Paquistão, a visão que mostra criação de dois Estados separados para mulçumanos e hindus motivada apenas por fatores religiosos é incompleta e parcial, pois o processo também foi marcado pelo uso da religião como instrumento para interesses políticos.

Em um ambiente de extrema fragilidade gerada pela divisão do subcontinente em linhas comunais, surge o Estado moderno indiano. Um Estado que nasce com marcas profundas do legado deixado pela política colonial. Essa contextualização é imprescindível, visto que o secularismo indiano no período de pré-independência, não teve como alicerce a elite colonial ocidental, e sim, foi fomentado pelos líderes indianos dos movimentos anticoloniais e de independência. Ou seja, a batalha contra o colonialismo representa o início do debate sobre secularismo da Índia independente.

Nesse contexto, o primeiro Primeiro Ministro Indiano, Jawaharlal Nehru, líder de extrema importância no processo de independência, exerceu papel fundamental da Índia secular. O novo governo, comandado pelo Congress Party, teve como base sua proposta constitucional de caráter plural, que procurou enaltecer os valores de multireligiosidade, multietnicidade e multiplicidade linguística do país, com o intuito de promover um entendimento inclusivo que pudesse agregar religiões e identidades diferentes. Os debates realizados pela assembleia constituinte demonstram que houve grandes esforços para estabelecer os artigos constitucionais que estabelecem a proibição da discriminação religiosa, tratamento igualitário de todos os cidadãos independente de sua religião, e também determina que o Estado não possua nenhuma religião.

Destaca-se aqui um trecho do debate da assembleia constituinte que revela aspectos primordiais sobre o secularismo na Índia: “O Estado indiano, sendo secular, deve se manter afastado de qualquer religião, credo ou profissão de fé; deve também manter atitude de neutralidade em todos os assuntos tocantes à religião”.

A constituição Indiana adotou um posicionamento que enfatiza a neutralidade inclusiva perante todas as religiões presentes em seu território. Isso significa que o a ideia de secular na Índia é caracterizada pela equidistância e tolerância entre o Estado e as religiões, em que o tratamento do estado diante todas as religiões é simétrico. Essa visão é contrastante, comparada à laicidade, separação estrita entre Estado e religião, que é marcada pela exclusão, como a própria origem da palavra laico determina (oposição ao religioso). Vale ressaltar que mesmo no ocidente existem versões diferentes de secularismo. O secularismo nos Estados Unidos, no Reino Unido, Dinamarca, Israel e entre outros, é diferente do secularismo francês, por exemplo. É completamente possível haver tolerância e pluralismo sem que haja laicidade. Portanto existe uma gama que vai de da laicidade, semi-laicidade, quase laicidade, secularização sem laicidade, países confessionais e secularizados, que caracterizam a multiplicidade do conceito secular.

O caráter multifacetado do secularismo e o conjunto de outros elementos – a tentativa de uma definição e prática singular do conceito na Índia e o aumento de conflitos de origem político-religiosa – fomentou a discussão entre os intelectuais indianos. Rajeev Bhargava é um dos teóricos mais importantes do país, e seu livro “Secularism and its Critics” é uma grande referência. Bhargava diz que os problemas do secularismo não estão necessariamente relacionados a um falho projeto modernizador. O que primeiramente deveria ser compreendido é que ideias são raramente simplesmente transportadas de um contexto para outro, elas passam por um processo de adaptação para se ajustar a um novo local. Segundo Bhargava, foi exatamente isso que aconteceu com o a ideia de secularismo na Índia, pois existe mais de uma maneira de interpretar e relacionar elementos que constituem o que é secular, que desafia uma ideia universal.

O secularismo indiano, portanto, de acordo com Bhargava tem características específicas que o diferencia de outras versões:

– Possui um caráter marcado pela multiplicidade de valores

– Sendo a sociedade indiana multireligiosa, o país se preocupa tanto com dominações interreligiosas quanto com conflitos intra-religiosos. Reconhecem assim, direitos sociais e culturais de comunidades com crenças e valores diferentes.

– É caracterizado pela ideia de “distância de princípios”, que é diferente do modelo de exclusão unilateral ou exclusão mútua.

– Agrega tanto hostilidade em relação a alguns aspectos religiosos (como a proibição da discriminação contra Dalits baseado no sistema de casta e outros pontos que promovem a justiça social) quanto o respeito por outras dimensões da religião.

– Mantém o compromisso a um modelo diferenciado de racionalidade moral, que é altamente contextual que abre a possibilidade de sociedades diferentes desenvolverem sua versão contextual de secularismo.

– O secularismo indiano oferece uma alternativa as noções normativas dos Estados modernos seculares. O modelo indiano é moderno, mas ao mesmo tempo se afasta das concepções convencionais estabelecidas no ocidente.

Outro intelectual indiano que contribui para o debate é o teórico Ashis Nandy, que oferece uma visão diferente, de caráter antimoderno. Nandy argumenta que a raíz dos problemas comunais e de violência relacionada a religião está no próprio conceito de secularismo e na modernidade. Através de seu tradicionalismo crítico, Nandy apresenta dois significados de religião em sua perspectiva antisecular. O de religião como fé e religião como ideologia. O primeiro representa um estilo de vida de diversas comunidades, e o segundo insere a religião como um identificador nacional que busca proteger determinados interesses econômicos e políticos. E é na religião como ideologia que se estabelece tanto a ideia de secularismo quanto o aumento da violência comunal, abandonando o significado de religião como fé. Segundo Nandy, essa concepção não é compatível com o papel da religião na vida da sociedade indiana.

Nandy, então, apresenta como alternativa uma versão de tolerância com raízes Gandhianas que também foi praticada por Ashoka e Akbar, em que existe não apenas tolerância perante as religiões, mas também tolerâncias religiosas. Nesse contexto, sua versão antimoderna propõe espaço para diálogo entre tradições religiosas diferentes e reflete como esse debate pode ser inserido na relação entre o Estado e a religião.

Por fim, para complementar o debate, é importante trazer alguns pontos da análise do Partha Chatterjee em seu artigo “Secularism and Toleration”, que faz uma crítica ao processo de implementação de princípios seculares no contexto indiano, e procura entender o problema de políticas estratégicas que buscam responder como grupos minoritários podem ser de fato, envolvidos nesse debate. Chatterjee critica a ideia da rigorosa “parede de separação” entre política e religião, pois essa prática tem gerado mais discriminação contra grupos minoritários. O conceito de equidistância perante todas as religiões também é criticado, por se mostrar duvidoso na prática, pois o Estado intervém na reforma de algumas leis da comunidade hindu, mas é ausente em comunidades mulçumanas, cristãs, parsi, entre outras.

Visto que a ideia de neutralidade é dificilmente aplicada, o envolvimento do Estado em questões religiosas precisa encontrar uma alternativa justa e legitima que esteja alinhada com diferentes grupos religiosos. Chatterjee afirma, para tanto, que para combater o crescimento de forças como a intolerância e o nacionalismo conservador, é preciso que o Estado democrático assegure políticas de tolerância religiosa. O conceito de tolerância tem um valor fundamental para o autor, pois esta deve ter como base a autonomia e o respeito pelas pessoas, considerando a sensibilidade das variações políticas e seus contextos institucionais em que razões distintas são inseridas.

Esse debate possibilita uma reflexão sobre o como é fundamental buscar entender os problemas em torno do secularismo de dentro para fora. Torna-se muito difícil compreender os desdobramentos da relação entre Estado, religião e sociedade quando o processo de secularização é generalizado e universalizado. A Índia é um grande exemplo de como é importante inserir aspectos culturais e sociais na compreensão desse processo social. A ideia chave, portanto, é a contextualização histórica e social que nos permite desenvolver um entendimento mais amplo e completo sobre as múltiplas formas de secularismo e como esse conceito se desenvolve com o tempo e localidades distintas.

É inegável que a Índia enfrenta sérios problemas referentes a violência, intolerância e conflitos de origem político-religiosa. A ideia secular, inclusiva e plural estabelecida na constituição está sendo duramente afetada com o crescimento da influência do Bharatiya Janata Party (BJP), partido da direita indiana. Essa ligação é evidenciada por uma série de eventos da política do país nos últimos anos. Um dos eventos mais notáveis foi a destruição da mesquita Babri Masjid construída no século dezesseis na cidade de Ayodhya, estado de Uttar Pradesh na década de noventa. As reivindicações clamavam pela destruição, pois segundo a tradição, aquele seria o local de um templo hindu dedicado a Rama. O acontecimento foi assistido pelo grupo nacionalista hindu, RSS, defensores de uma agenda ultraconservadora, que evidencia as ações comunalistas, usando a religião como instrumento para criar identidades políticas. O BJP, nesse contexto, serviu ativamente como voz política para as declarações do grupo nacionalista. Após este acontecimento, o país presenciou uma série de outros eventos violentos com configurações similares e com os mesmos atores.

Este crescimento evidencia o uso da religião como ideologia para fins de poder políticos e manipulação da população, que demonstra a parcialidade do Estado em relação a determinada religião. Quando essa situação é percebida, a harmonia do país certamente sofre abalos, que pode ser enfrentado com reposicionamento através de reformas e criação de políticas iguais para todas as comunidades, ou o governo pode continuar criar articulações que favorecem determinada grupo e tratar os demais como cidadãos de segunda classe. E nesse ponto reside uma questão importante das condições de cidadania sob um secularismo ameaçado. O atual governo indiano utiliza uma suposta vantagem em números de uma maioria hindu para seus fins políticos, e propaga sentimentos antagônicos e comunais pelo país. O que precisa ser urgentemente endereçado é como é possível mudar essa conjuntura, pois devem existir alternativas lideradas pelo Estado para proteger aqueles que configuram as minorias.

Existem, portanto, muitas dificuldades em torno do secularismo, é uma questão que afeta países com características e circunstâncias completamente diferentes. É um desafio intrínseco do período que vivemos e não pode ser solucionado facilmente. O que é fundamental frisar é que a laicidade francesa, por exemplo, não pode ser simplesmente transferida e imposta em outras sociedades inseridas em outras realidades. O secularismo francês – que demorou mais de um século para se estabelecer – também enfrenta uma grande crise, pois não é capaz de dialogar com a nova conjuntura do país que envolve novas comunidades, que não fizeram parte do debate sobre laicidade e secularização, e são jogadas para as margens da sociedade.

Nesse sentido, o secularismo continuará sendo tema de grandes debates que ultrapassa diversas fronteiras. A complexidade do contexto indiano nos mostra que existem uma série de aspectos que devem ser considerados para compreender o que está sendo debatido, que inclui a multiplicidade da ideia de secularismo, o significado da religião, as forças políticas como o comunalismo e o nacionalismo conservador e as condições históricas e sociais que moldam as especificidades da discussão.

Não se sabe qual seria a melhor alternativa, mas a análise de visões diferentes nos ajuda a refletir sobre possibilidades de linguagens contextuais que promovam, por meio de diálogos, ideias mutualmente aceitas por todas as partes, e assim possibilitando a criação de uma expressão que todos possam entender e aceitar.

Vitor Pascale
Mestrando em Política Internacional pela Jawaharlal Nehru University (JNU) – Nova Delhi, Índia, com a dissertação sobre "Resistência do Sul Global nas Relações Internacionais: Brasil e Índia à luz dos estudos pós-coloniais". Bacharel em Relações Internacionais pela ESPM.
Áreas de estudo e interesse: Sul Global, Pós-colonialismo, Sul asiático, Relações Brasil-Índia, Cooperação Sul-Sul