O governo da Índia revogou, no último dia 05, dois artigos da sua Constituição que estabeleciam o estatuto especial que o Estado de Jammu-Caxemira gozava desde o período da independência do país, em 1947. Entre os “desfalques” legais estão o direito à Constituição própria e direitos exclusivos para a população autóctone. Com isto, a região perde sua autonomia e passa a ser tratada como qualquer outro estado da Índia.
Quais seriam as consequências?
Proponho aos amigos revisitar a História:
A Coroa Britânica dominou a Índia de 1858 a 1947. Mas, ao final da II Guerra Mundial, exaurida, ela iniciou o processo de descolonização de seus territórios, começando pelo Raj Britânico. Para tanto, enviou a Delhi um jurista londrino, Sir Cyril Radcliffe, a quem incumbiu de desenhar, num gabinete isolado do South Block (hoje sede da Chancelaria indiana), as fronteiras entre os países que seriam a Índia e o Paquistão. Ignorando a real situação das populações locais e insensível aos meandros políticos da questão, Sir Cyril realizou a divisão da maneira que lhe pareceu mais lógica: as áreas de maioria muçulmana seriam entregues ao Paquistão e as não-muçulmanas (hindus, sikhs, jains, etc…) ficariam na Índia…ou seja, a “crônica da morte anunciada”. Claro! Onde havia maioria muçulmana, havia também minoria não-muçulmana…e vice-versa. Missão impossível para um ocidental…
A Partição do Raj Britânico deslocou de forma traumática entre dez e doze milhões de pessoas de um lado para o outro do Subcontinente: milhões de muçulmanos deixaram a Índia e foram para o Paquistão; no sentido inverso, não-muçulmanos – hindus, sikhs, jains, etc.- fugiram para a Índia. Esta migração forçada acrescentou o saldo nefasto de cerca de dois milhões de mortos aos milhões de migrantes, de ambos os lados (nunca se saberá quantos ao certo)…
O Raj Britânico convivia, nessa época, com os chamados “Princely States”, reinos locais vassalos da Coroa de Londres. Seus monarcas foram convocados a decidir se iriam anexar-se à Índia ou ao Paquistão. A quase totalidade decidiu juntar-se à primeira. Apenas o Marajá da Caxemira, Hari Singh (hindu) e o Nawab de Hyderabad, Nizam Usman Ali (muçulmano) ficaram em dúvida. Hari Singh porque, embora fosse hindu, a quase totalidade da população do seu principado era muçulmana e seu território contíguo ao Paquistão. O de Hyderabad, de maioria islâmica em região cercada de hindus por todos os lados, não resistiu e finalmente cedeu, juntando-se à nascente República da Índia.
Hari Singh, ao ver o seu território invadido por milícias paquistanesas pediu socorro ao recém-formado governo da Índia, que não somente o acudiu, senão também anexou a região. Foi, então, criada uma fronteira provisória – a Linha de Controle/ L.o.C, que ainda vige e é palco de confrontos intermitentes.. A ONU também entrou em cena e, pela Resolução de no. 47 do Conselho de Segurança, adotada em abril de 1948, recomendou a realização de um plebiscito junto à população local, o que jamais ocorreu por recusa da Índia, que considera a questão como um “assunto interno” (temerosa, certamente, de um resultado favorável ao Paquistão). Este plebiscito teria sido, talvez, a solução possível para esta herança nefasta da História.
A Caxemira tornou-se o foco principal da confrontação crônica entre os dois vizinhos, e já os levou a três guerras declaradas, a uma corrida nuclear –ambos são potências atômicas não reconhecidas pelo “Tratado de Não-Proliferação Nuclear” – e também a várias escaramuças, principalmente a partir do início da década de noventa, quando a resistência aos soviéticos no Afeganistão levou milhares de “mujahedeens” afegãos (e também de vários outros países) a se instalar no Paquistão, e também na Caxemira, para combater na “jhad” contra os infiéis soviéticos. Este foi o início da militância terrorista na região, que já vitimou mais de 70 mil pessoas…e também o “berçário” dos Talebãs, da Al Qaeda, do Estado Islâmico, etc…
O onipresente clima de beligerância entre os dois vizinhos vem-se acirrando desde que o “Bharatya Janata Party”/BJP, partido nacionalista hindu, e sua vertente ideológica radical – o “hindutva”- ganharam maior espaço no cenário político indiano a partir sobretudo da eleição do Primeiro-Ministro Narendra Modi, em 2014 (reeleito recentemente). Ora, num país com a diversidade étnica, cultural e principalmente religiosa como a Índia, a única forma de manter a harmonia social tem sido a observância do princípio do Estado laico, tal como a Constituição do país estabelece – lapidarmente – no seu Preâmbulo. Senão é o caos, como se tem testemunhado recentemente.
A decisão do governo de Delhi vem acirrar ainda mais o clima de beligerância entre os dois vizinhos. A reversão do estatuto jurídico da Caxemira “esquentou” o ambiente e insuflou ainda mais os ânimos da militância separatista caxemiriana. Do lado paquistanês, foi convocada para a próxima semana uma reunião do Alto Comando Militar para avaliar eventuais represálias à vizinha caso a situação escape ao controle . O Presidente do partido “Pakistan Muslim League-Nawaz”, Shahbaz Sharif, afirmou que pedirá a intervenção do Conselho de Segurança da ONU.
Estaríamos à beira de mais uma guerra Índia-Paquistão? De qual dimensão? Analistas catastrofistas chegaram ao ponto de imaginar ataques nucleares de ambos os lados, etc… Minha vivência nos dois lados da fronteira leva-me a matizar as ameaças e contra-ameaças. Conhecem bem, tanto a Índia quanto o Paquistão, as consequências de um ato insano desta dimensão, para toda a região…afinal, China e Rússia estão ao lado e certamente não se manterão alheias a uma ameaça de catástrofe. As consequências seriam de tal tamanho que, a meu ver – e assim espero – a guerra será, em última instância, verbal. Espero estar certo…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão