ISSN 2674-8053

A Caxemira: buscando entender a herança do colonialismo

O governo da Índia revogou, no último dia 05, dois artigos da sua Constituição que estabeleciam o estatuto especial que o Estado de Jammu-Caxemira gozava desde o período da independência do país, em 1947. Entre os “desfalques” legais estão o direito à Constituição própria e direitos exclusivos para a população autóctone. Com isto, a região perde sua autonomia e passa a ser tratada como qualquer outro estado da Índia.

Quais seriam as consequências?

Proponho aos amigos revisitar a História:

A Coroa Britânica dominou a Índia de 1858 a 1947. Mas, ao final da II Guerra Mundial, exaurida, ela iniciou o processo de descolonização de seus territórios, começando pelo Raj Britânico. Para tanto, enviou a Delhi um jurista londrino, Sir Cyril Radcliffe, a quem incumbiu de desenhar, num gabinete isolado do South Block (hoje sede da Chancelaria indiana), as fronteiras entre os países que seriam a Índia e o Paquistão. Ignorando a real situação das populações locais e insensível aos meandros políticos da questão, Sir Cyril realizou a divisão da maneira que lhe pareceu mais lógica: as áreas de maioria muçulmana seriam entregues ao Paquistão e as não-muçulmanas (hindus, sikhs, jains, etc…) ficariam na Índia…ou seja, a “crônica da morte anunciada”. Claro! Onde havia maioria muçulmana, havia também minoria não-muçulmana…e vice-versa. Missão impossível para um ocidental…

A Partição do Raj Britânico deslocou de forma traumática entre dez e doze milhões de pessoas de um lado para o outro do Subcontinente: milhões de muçulmanos deixaram a Índia e foram para o Paquistão; no sentido inverso, não-muçulmanos – hindus, sikhs, jains, etc.- fugiram para a Índia. Esta migração forçada acrescentou o saldo nefasto de cerca de dois milhões de mortos aos milhões de migrantes, de ambos os lados (nunca se saberá quantos ao certo)…

O Raj Britânico convivia, nessa época, com os chamados “Princely States”, reinos locais vassalos da Coroa de Londres. Seus monarcas foram convocados a decidir se iriam anexar-se à Índia ou ao Paquistão. A quase totalidade decidiu juntar-se à primeira. Apenas o Marajá da Caxemira, Hari Singh (hindu) e o Nawab de Hyderabad, Nizam Usman Ali (muçulmano) ficaram em dúvida. Hari Singh porque, embora fosse hindu, a quase totalidade da população do seu principado era muçulmana e seu território contíguo ao Paquistão. O de Hyderabad, de maioria islâmica em região cercada de hindus por todos os lados, não resistiu e finalmente cedeu, juntando-se à nascente República da Índia.

Hari Singh, ao ver o seu território invadido por milícias paquistanesas pediu socorro ao recém-formado governo da Índia, que não somente o acudiu, senão também anexou a região. Foi, então, criada uma fronteira provisória – a Linha de Controle/ L.o.C, que ainda vige e é palco de confrontos intermitentes.. A ONU também entrou em cena e, pela Resolução de no. 47 do Conselho de Segurança, adotada em abril de 1948, recomendou a realização de um plebiscito junto à população local, o que jamais ocorreu por recusa da Índia, que considera a questão como um “assunto interno” (temerosa, certamente, de um resultado favorável ao Paquistão). Este plebiscito teria sido, talvez, a solução possível para esta herança nefasta da História.

A Caxemira tornou-se o foco principal da confrontação crônica entre os dois vizinhos, e já os levou a três guerras declaradas, a uma corrida nuclear –ambos são potências atômicas não reconhecidas pelo “Tratado de Não-Proliferação Nuclear” – e também a várias escaramuças, principalmente a partir do início da década de noventa, quando a resistência aos soviéticos no Afeganistão levou milhares de “mujahedeens” afegãos (e também de vários outros países) a se instalar no Paquistão, e também na Caxemira, para combater na “jhad” contra os infiéis soviéticos. Este foi o início da militância terrorista na região, que já vitimou mais de 70 mil pessoas…e também o “berçário” dos Talebãs, da Al Qaeda, do Estado Islâmico, etc…

O onipresente clima de beligerância entre os dois vizinhos vem-se acirrando desde que o “Bharatya Janata Party”/BJP, partido nacionalista hindu, e sua vertente ideológica radical – o “hindutva”- ganharam maior espaço no cenário político indiano a partir sobretudo da eleição do Primeiro-Ministro Narendra Modi, em 2014 (reeleito recentemente). Ora, num país com a diversidade étnica, cultural e principalmente religiosa como a Índia, a única forma de manter a harmonia social tem sido a observância do princípio do Estado laico, tal como a Constituição do país estabelece – lapidarmente – no seu Preâmbulo. Senão é o caos, como se tem testemunhado recentemente.

A decisão do governo de Delhi vem acirrar ainda mais o clima de beligerância entre os dois vizinhos. A reversão do estatuto jurídico da Caxemira “esquentou” o ambiente e insuflou ainda mais os ânimos da militância separatista caxemiriana. Do lado paquistanês, foi convocada para a próxima semana uma reunião do Alto Comando Militar para avaliar eventuais represálias à vizinha caso a situação escape ao controle . O Presidente do partido “Pakistan Muslim League-Nawaz”, Shahbaz Sharif, afirmou que pedirá a intervenção do Conselho de Segurança da ONU.

Estaríamos à beira de mais uma guerra Índia-Paquistão? De qual dimensão? Analistas catastrofistas chegaram ao ponto de imaginar ataques nucleares de ambos os lados, etc… Minha vivência nos dois lados da fronteira leva-me a matizar as ameaças e contra-ameaças. Conhecem bem, tanto a Índia quanto o Paquistão, as consequências de um ato insano desta dimensão, para toda a região…afinal, China e Rússia estão ao lado e certamente não se manterão alheias a uma ameaça de catástrofe. As consequências seriam de tal tamanho que, a meu ver – e assim espero – a guerra será, em última instância, verbal. Espero estar certo…

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.