ISSN 2674-8053

Protestos ou revolução? O nascimento de um novo Líbano

Autora: Letícia Fadlallah

A mídia ocidental retratou o motivo da onda de protestos que ocorrem no Líbano desde 17 de outubro de 2019 até o início da pandemia de Covid-19, como uma reação à imposição de uma nova taxação sobre as chamadas de voz do aplicativo WhatsApp, um erro, pois este não é o principal motivo para que os libaneses têm chamado de revolução. As verdadeiras razões por trás da indignação da população, vem de uma estagnação econômica e crise política que, há anos, indigna a população. Antes da pandemia o país sofria com a falta de coleta de lixo pois, segundo o governo, não tinha recursos financeiros suficientes para pagar os caminhões de lixo, o que gerou montantes de resíduos nas ruas libanesas. A tarifa das chamadas de voz foi apenas o estopim para este verdadeiro levante popular.

Além disso, poucos dias antes das marchas populares começarem, o país sofreu com cem incêndios florestais que não conseguiram ser contidos pelo próprio Estado libanês já que, novamente, segundo o governo, não havia recursos para pagar a manutenção dos helicópteros destinados à problemas como esse. Portanto, foi necessário negociar financeiramente com Chipre uma quantia para trazer os meios aéreos para o Líbano e apagar as chamas.

Outrossim, a alta de impostos foi responsável por aumentar o preço da farinha, o que indignou os padeiros que pararam de produzir e passaram a protestar, levando à falta de pão no país. Para entender esse problema, é necessário saber o peso que o pão possui na cultura árabe. Antigamente, esse alimento era o principal alimento da população mais pobre. Ao longo da história, o trigo passou a ser moeda de troca devido à sua grande disposição de nutrientes e, hoje, o pão é utilizado em diversas comidas típicas. Em uma mesa libanesa – seja café da manhã, almoço ou jantar – esse alimento nunca pode faltar. Então, para essa população ficar sem seu subsídio básico, enfureceu ainda mais o povo.

Diante dos acontecimentos prévios, é possível perceber que a taxação do WhatsApp foi apenas a “gota d’agua” e não o motivo principal para a série de protestos que o país viveu. Isso porque o montante que é pago em impostos é tão alto que a justificativa de “não ter recursos suficientes” dada pelo governo não é mais aceita pela população. Segundo dados da Heritage Foundation em relação ao índice de 2019 sobre a liberdade econômica do país, o Líbano sofre com excessiva corrupção em eleições, além de contratos governamentais, tributação, decisões judiciais e registro de imóveis. Em meio a esse cenário, medidas de anticorrupção são raramente aplicadas, ou seja, a população estava recebendo de volta do governo muito pouco por tudo que ela paga, deixando-a ainda mais descontente.

Quando os protestos – ou revolução – começaram, os manifestantes estavam fechando as ruas a partir da queima de pneus, mas essa atitude rapidamente parou devido aos problemas que o gás liberado das queimas traz para o meio ambiente e o país já sofre bastante com a alta poluição. Portanto, ao invés de se rebelar e transformar a situação em perigosa, os manifestantes simplesmente cantaram músicas nacionais como o próprio hino e, também, “El Hak Ma Bimout” de Joseph Attieh que possui como refrão “O Líbano voltará; E o que é certo nunca morrerá; E o sol vai nascer no lindo céu de Beirut”. Além disso dançaram também a principal coreografia da cultura: o Dabke. Para muitos, esses protestos foram descritos como bonito e pacífico já que, ele uniu todas as diferentes religiões. Nessa revolução não tinham muçulmanos sunitas, xiitas e católicos, mas sim libaneses.

Com essa força alcançada, os manifestantes que foram cada vez mais para as ruas e fechá-las. Dentre os manifestantes, estava Alaa Abou Fakher, sua esposa e seus filhos. Em uma das noites de protesto, 12 de novembro de 2019, o homem estava fechando uma das ruas quando um membro do exército libanês queria atravessá-la, mas, como havia uma multidão nesse mesmo trajeto, Alaa não permitiu sua passagem. Diante da atitude tomada pelo manifestante, o membro do exército ordenou ao seu guarda-costas que matasse o homem. E assim foi feito: Alaa foi assassinado na frente de sua esposa e filhos. Após o tumulto gerado pelo assassinato, o presidente Michel Aoun, fez um discurso no qual disse que as pessoas que não confiavam em ninguém do governo não pertenciam ao país e se eles não gostavam do sistema político então que simplesmente migrassem do país. Essa atitude aborreceu ainda mais os manifestantes que foram cada vez mais para as ruas e fechá-las.

O primeiro assassinato de um manifestante uniu ainda mais a população: tanto os muçulmanos sunitas e xiitas quanto os católicos lamentaram a morte do homem. O sentimento de unidade esteve bastante presente quando dezenas de milhares de libaneses formaram uma corrente humana ligando de norte (Trípoli) ao sul (Tiro) do país, formando ao todo 170 km. O vínculo criado foi importante principalmente por causa dos resultados da guerra civil que teve seu início em meados dos anos de 1970 e que durou até 1990, que foi um conflito entre aldeias, principalmente devido à diferença religiosa.

Para uma melhor compreensão dos desdobramentos da guerra civil libanesa é necessário entender as principais diferenças entre as religiões. O sunismo e o xiismo são as duas principais vertentes da religião Islã que seguem linhas de pensamentos e crenças diferentes após a morte de Maomé – autor do livro sagrado dos muçulmanos: o Alcorão. Os sunitas acreditam que o sucessor legítimo de Maomé deveria ser seu conselheiro, Abu Bakr, já para os xiitas, o sucessor de Maomé deveria ser algum membro de sua família, legitimando então Ali, genro de Maomé, como candidato para esse cargo. A partir daí outras diversas diferenças surgiram como o modo de rezar, suas visões entre diversos acontecimentos – como um casamento temporário – entre outros. Como consequência dessas divisões outras surgiram. As que seguem a linha de pensamento sunita são as mais radicais já que levam estritamente o que foi escrito por Maomé – sendo elas o Wahabismo, por exemplo, que são conhecidos por seu culto monoteísta extremo. As vertentes do xiismo são consideradas menos radicais.

Além do mundo muçulmano, a presença católica é bastante forte no país. A principal vertente da religião no território são os cristãos Maronitas. Sua origem vem de São Maroun, um monge venerado como santo. Além deste, outros são também reconhecidos como Santos como por exemplo São Charbel e Santa Rafqa.

A guerra civil libanesa teve origem após a derrota dos exércitos árabes em relação a criação do Estado de Israel que resultou na entrada de muitos refugiados palestinos no país. Apesar do aumento da população muçulmana – se tornando a maioria no país – eles nunca conseguiram ter seus representantes em altos cargos do parlamento, como a presidência, pois a Constituição libanesa determina que esse cargo deve ser ocupado por um cristão maronita. A medida que o número de refugiados palestinos aumentou no país, eles criaram a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), se instalaram na capital, Beirut, e passaram a agir independente do resto do país e atacar Israel pela fronteira. Com isso, os cristãos maronitas se indignaram com o governo que estava permitindo aqueles atos e se juntaram com um partido de extrema direita que defendia a expulsão desses refugiados. O crescimento da tensão entre os dois lados – extrema direita contando com os maronitas e o exército libanês defendendo a saída dos palestinos e extrema esquerda apoiada pelos muçulmanos que defendia e apoiava a OLP – levou à eclosão da guerra em 1975.

Por isto mesmo, atualmente, quando todas as diferentes linhas religiosas se uniram para protestar pacificamente, pode-se perceber o sucesso na criação de um sentimento de união entre libaneses. Esta união levou a uma pressão tão grande que conseguiu também fazer com que o primeiro ministro Saad Hariri renunciasse. No entanto, apesar das conquistas, há, também, as perdas da população. Durante esse período, os bancos, escolas, universidades, entre outros paralisaram, ou seja, ninguém conseguia sacar dinheiro ou estudar. Agora, os estudantes tiveram de abrir mão de suas férias para recompensar os dias perdidos. Em relação aos bancos, estes ainda estão segurando o dinheiro.

Contudo, com a chegada da pandemia da Covid-19 ao país, – em meados de abril o Estado consta oficialmente mais de 600 casos dos quais 530 estão ativos- o Ministério da Saúde, advertiu que a quarentena era essencial nesse período. O resultado do isolamento social foi a extinção dos protestos em massa, que foram substituídos por pequenas concentrações na frente dos bancos uma vez que a população ainda segue com uma quantidade limitada de dinheiro que pode ser sacado por semana. Em meio a essa situação de pobreza, os partidos políticos estão fornecendo alguns itens essenciais – como pão e leite – e, aos poucos, recuperando a credibilidade que havia sido perdida, fazendo com que as diferentes partes do Líbano tenham preferências distintas pelos mesmos. No entanto, a insatisfação ainda é muito grande, o que deixa incerto o futuro que o país aguarda, mas tudo indica que os libaneses continuarão, dia após dia, fazendo a revolução na busca de seus direitos básicos.

Esta insatisfação voltou com mais força após a gigantesca explosão ocorrida em 04 de agosto de 2020, no porto de Beirute. A causa foi a explosão de nitrato de amônio que estava armazenada em um armazém havia anos, e que resultou na morte de mais de 200 pessoas, deixou mais de 6 mil feridos e mais de 300 mil desabrigados, com danos materiais avaliados ao redor de U$ 3 bilhões.

No dia seguinte à explosão os protestos voltaram, mais fortes e violentos. Vários ministros pediram demissão, e até mesmo o primeiro ministro Hassan Diab, no dia 10 de agosto. Houve a promessa de novas eleições gerias assim que possível, mas a revolta popular contra toda a classe política continua muito grande.

No dia 22 de outubro Saad Hariri foi eleito pelo Parlamento novamente como primeiro ministro, um ano depois dele ter se demitido do posto quando os protestos tiveram início. O que se espera é que ele aceite a proposta do governo francês para a implementação de reformas que combatam a corrupção, mude o setor energético, e resolva crise bancária. Só assim a promessa de ajuda financeira internacional poderá ser liberada.

Se a situação no início do ano era ruim, a pandemia e a explosão no porto, tornaram a realidade libanesa muito pior, com uma recessão econômica profunda, desemprego recorde, desvalorização da moeda nacional frente ao dólar acima dos 75%, e uma dívida externa ao redor de U$ 74 bilhões, ou seja, perto de 140% do PIB de U$ 54 bilhões, que ao fim do ano pode chegar a uma contração para perto de U$ 41 bilhões segundo o Fundo Monetário Internacional.

Se antes destas crises a população libanesa já havia mudado sua atitude diante do governo, é de se esperar que, quando a crise do Covid 19 diminuir o distanciamento social, a pressão por reformas profundas sejam implementadas. Só podemos torcer para que estas ocorram de forma pacífica, mas, sem dúvida alguma, um novo Líbano já nasceu.

REFERÊNCIAS: 

Al Jazeera. Saad Hariri renamed as Lebanon PM a yar after stepping down. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/10/22/lebanons-saad-hariri-secures-parliamentary-support-to-be-next-pm Acesso em 22: out 2020.

“El Hak Ma Bimout” – Joseph Attieh. Disponível em: https://youtu.be/sHu4b3nZicY Acesso em: 05 dez 2019.

G1. Primeiro-ministro do Líbano anuncia renúncia após 2 semanas de protesto. 29 out 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/10/29/primeiro-ministro-do-libano-renuncia.ghtml Acesso em: 05 dez 2019.

Heritage. 2019 Index of Economic Freedom: Lebanon. 2019. Disponível em: https://www.heritage.org/index/country/lebanon#regulatory-efficiency Acesso em: 06 dez 2019.

IMF. Lebanon Report 2020. Disponível em: https://www.imf.org/en/Countries/LBN. Acesso em: 30 out 2020.

Tradução do árabe para o inglês da letra da música “El Hak Ma Bimout”. Disponível em: https://www.allthelyrics.com/forum/showthread.php?t=50347?t=50347#post422199 Acesso em: 05 dez 2019.

NASCIMENTO, Talita. O Lugar do Pão na Cultura Árabe. Trilhas e Sabores. 17 out 2018. Disponível em: https://trilhasesabores.com.br/o-lugar-do-pao-na-cultura-arabe/ Acesso em 07 dez 2019.

Portal São Francisco. Guerra do Líbano. Disponível em: https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/guerra-do-libano acesso em: 14 dez 2019.

The Arab Weekly. Quarantine is inevitable, warns Lebanon’s Health Minister. Disponível em: https://thearabweekly.com/quarantine-inevitable-warns-lebanons-health-minister Acesso em: 11 abr 2020.

Worldometer. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries Acesso em: 12 abr 2020.

Núcleo de Estudos e Negócios Oriente Médio
O Núcleo de Estudos e Negócios Oriente Médio (NENOM) está ligado ao Centro Brasileiro de Estudos de Negócios Internacionais & Diplomacia Corporativa (CBENI) da ESPM-SP. Foi criado considerando a necessidade de estimular a comunidade acadêmica brasileira e latino-americana a compreender melhor suas relações com os países da região.