ISSN 2674-8053

China e Brasil: o velho e o moço

Presidente chinês Xi Jinping com o Presidente brasileiro Jair Bolsonaro em Brasilia, 13 de novembero de 2019. (Xinhua Photo)

Seguindo a moda em voga no Brasil atual de discursar utilizando-se de metáforas relacionadas aos aspectos triviais e privados da vida humana, iniciemos por uma metáfora, porém, vamos a enriquecer com alguns conceitos e exemplos do longínquo oriente. É sabido que, em diversas fases da vida, nos deparamos com crises de circunstâncias diversas, umas leves, outras graves. Hoje, com 520 anos de história, o Brasil pode ser considerado uma jovem nação, diante dos 5000 anos que a China possui. Este jovem, tal como qualquer outro, enfrenta crises, só que nesse momento são crises intensas que dependendo de suas escolhas, definirão os rumos e os resultados do futuro. Nessa fase o mais sensato é buscar conselhos, referências e simular possíveis cenários para seguir a melhor direção. O filósofo Wang Yangming (1963, p.146) em uma carta a um amigo, escreveu: “O conhecimento inato é idêntico ao Caminho. Que esteja presente na mente é verdadeiro não só no caso dos sábios e dos dignos, como também no das pessoas comuns. Quando se está livre das forças impulsivas e da observância dos desejos materiais, e se segue o conhecimento inato deixando que este continue a funcionar e a agir, tudo estará de acordo com o Caminho”. Pode-se depreender que, ao que ele denomina como conhecimento inato, podemos dar o nome de bom senso e ao que ele chama de Caminho, tomemos então por virtudes, segundo a definição dada por Platão no livro IV da República. Assim, armemo-nos então do bom senso para chegarmos às virtudes. Avaliemos a seguir alguns conceitos e exemplos que a história chinesa pode nos dar. 

   As interpretações que os chineses possuem sobre a história são notáveis e são orientadas para o estudo dos métodos e das teorias que possam explicar o passado e antever o futuro. Ora, nesses estudos se realizam cálculos e análises profundas em busca da imutabilidade ou da constância, do ritmo, de alguma regularidade que possa nos guiar no estudo da historiografia. São inúmeras as interpretações, mas para o que se pretende analisar neste texto faz se necessário apresentar apenas três delas, as mais significativas. A primeira e mais tradicional é o conceito do Mandato dos Céus, nesta interpretação tem se um ponto alto, que é o início de uma nova dinastia, iniciada por homens virtuosos, mas que com o tempo essa dinastia vai se desgastando, desmoralizando, decaindo e finda com governantes débeis que por não merecerem, perdem o Mandato dos Céus. É importante salientar que, a perda se dá como consequência da própria debilidade em governar, ou seja, o governante sendo fraco, o estado corrupto e a administração ineficiente os resultados prováveis serão as crises econômicas, políticas e sociais, sendo que cada um destes serão vistos como sinais da presumida perda do Mandato dos Céus. Essa teoria é muito parecida com a doutrina ocidental, político e religiosa do Direito Divino, pois ambas definem que o governante governa por vontade divina, contudo a doutrina chinesa vai além e traz outros aspectos que a torna um pouco distinta, como a própria ideia da ordem cíclica e a possibilidade de perda do mandato por sinais divinos. A teoria do Mandato dos Céus foi muito popular até o sec. XX com o nascimento da República Popular da China, quando decaiu nos meios acadêmicos, mas ainda hoje se mantém no imaginário popular.

Outro conceito que se mantém no entendimento popular é o do famoso escritor Luo Guanzhong, autor do Romance dos Três Reinos, que no início do seu livro, logo na primeira página, sentenciou que “sob os céus, após um longo período de divisão, vem a união; após um longo período de união, vem a divisão”. Ou seja, a história além de cíclica, move-se obedecendo às forças que ora agem no sentido de convergir, ora no sentido de divergir. Com efeito, compreendemos que existem diversos elementos sociais que atuam para impulsionar as tais forças num sentido ou em outro, mas o elemento mais decisivo é a constante vontade de mudança que pertence a todas as sociedades.

O terceiro conceito veio à tona com o advento da República. A historiografia chinesa passou a adotar a interpretação marxista do materialismo histórico, onde o prisma são as lutas de classes, e que estas são a força motriz que impulsionam as sociedades para os estágios de desenvolvimento histórico, que começa no escravismo, depois feudalismo, depois capitalismo e tem seu ápice no comunismo. Claro que essa é uma versão utilitarista que advoga em favor do comunismo implantando pela própria República Popular que naquele tempo se instaurou. De toda forma, o conceito novo que essa interpretação trouxe foi a ideia de que a luta entre as classes foi o que movimentou o desenvolvimento histórico, conceito esse inédito na historiografia chinesa.

Mas o que tudo isso tem a ver com o Brasil? Bom, apresentados os conceitos, vamos aos fatos. No início do séc. XVII na antiga China, quem detinha o Mandato dos Céus era a outrora poderosa Dinastia Ming, mas que nos anos 1600 caminhava rumo ao seu declínio. O imperador era fraco, isolado e introvertido; a corte extremamente corrupta; o Estado ineficiente; crise no sistema educacional; individualismo sem freios e a constante quebra dos padrões éticos gerais. Os resultados disso como anteviu a historiografia chinesa, foram fatais, crise institucional, política, econômica e social. Alguma semelhança com o que se passa atualmente no Brasil? Pois ainda tem mais, por volta de 1611, foi fundada a “Sociedade Donglin”, voltada para a ética, para o estudo histórico, para o debate político e principalmente ao combate à corrupção. Soa próximo aos movimentos sociais políticos surgidos no Brasil recentemente? Mas ainda tem mais, em 1624 as distintas facções do sistema se uniram em uma forte campanha contra o movimento anticorrupção e aniquilaram seus principais líderes. As semelhanças ainda não estão claras, ainda é necessário mais? Pois bem, vamos ao componente que surgiu em 1642, neste ano a China é assolada por uma epidemia onde segundo os relatos da época “havia poucos sinais de vida humana nas ruas, e tudo o que se ouvia era o zunido das moscas”. Dizem que as perdas humanas foram tão graves que “no começo os corpos eram enterrados em ataúdes e depois em pastos, mas por fim foram deixados nas camas”.

Respeitadas as diferenças culturais, históricas e geográficas o que se demonstra aqui é que tanto a historiografia chinesa quanto o diagnóstico de Karl Marx nas famosas linhas iniciais de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “Hegel diz em algum lugar que todos os fatos e personagens de grande importância na história mundial ocorrem, necessariamente, duas vezes. Ele esqueceu-se de acrescentar: primeiro como tragédia, segundo como farsa”,  se mostram verdadeiros e evidentes. Constata-se também que, igualmente, o Brasil do início do século XXI com um governo débil, congresso corrupto, estado ineficiente, crise no sistema educacional, individualismo sem freios e a constante quebra dos padrões éticos gerais somados à pandemia da Covid-19, apresenta um cenário muito semelhante ao do fim da Dinastia Ming.

Teria então a China a resposta para os nossos erros? Obviamente não. O que se pretende aqui não é dizer que devemos seguir a China, é exatamente o contrário, é aprender com o erro, pois a China daquele momento acelerou rumo ao abismo. Os resultados foram nefastos, pilhas de corpos, fome e falência do Estado. Seria então a China atual o modelo a ser seguido? Sabemos que a conjuntura atual da China não está nem um pouco próxima a do Brasil. A China de hoje enfrenta outros problemas, porém nenhum deles se relacionam a decadência do regime político. A China que pode nos ensinar de fato é a outra, aquela do fim da dinastia Ming, que como exposto, falhou. Vamos aprender com os erros do passado. Deixemos a experiência do velho prevenir o moço. Conforme ensinou Wang Yangming, guiados sempre pelo bom senso.

O que se propõe aqui é fazer diferente da antiga China, é lutar contra a maré, é entender a importância das instituições, é o combate incansável à corrupção, é a exigência permanente por um estado eficiente, é a reforma do sistema educacional para um que traga resultados benéficos, é um maior equilíbrio entre coletivismo e individualismo e, por fim, a retomada dos padrões éticos elevados, pois tal como disse Montesquieu “a corrupção dos governantes quase sempre começa com a corrupção dos seus princípios”. Façamos diferente dos cidadãos de Pequim daquele tempo, que cansados, se entregaram e abriram as portas da cidade aos inimigos. Impulsionemos o sentido da história a nosso favor, convergindo nos temas guiados por princípios republicanos e divergindo dos que fogem deles. Como disse o maior dos oradores da língua portuguesa, o ilustre padre Antônio Vieira em 1654 no Sermão de Santo Antônio pregado na cidade de São Luís do Maranhão “Vós…sois o sal da terra; e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção… “. Passemos, pois, a salgar e a deixar o bom senso agir e não haverá dificuldades que nenhum moço não possa solucionar.

Rodrigo Moura
Diretor de Relações Internacionais do Instituto IBRACHINA. Mestrando em Estudos Chineses pela Universidade de Zhejiang e Especialista em Negócios Internacionais pela FGV (2016).