O “Estadão” do dia 11/10 publica na sua página internacional uma longa matéria sobre a questão das relações entre o Continente e a Ilha, nomeadamente entre Pequim e Taipé.
Citando como fontes o New York Times, Washington Post e a Agência France Presse (sic), o jornal noticia que “em mais um movimento de deterioração da relação entre China e Taiwan, os líderes do país e da ilha trocaram acusações e ameaças sobre a unificação do território, considerado por Pequim como uma de suas províncias. No fim de semana do 110.º aniversário da Revolução de 1911, a tensão no Estreito de Taiwan só aumenta, após a maior incursão por aviões militares chineses na zona de identificação de defesa aérea da ilha”.
Nessa mesma página o jornal replica matéria do “The Economist” intitulada “Xi Jinping amplia ameaças à ilha”. O texto afirma que “foi uma provocação deliberada, programada patrioticamente. Em 1.º de outubro, dia nacional do país, a China lançou 38 aeronaves, incluindo caças e bombardeiros, na direção de Taiwan. As aeronaves entraram na Zona de Identificação de Espaço Aéreo (Ziea) da ilha, uma região tampão em que intrusões causam alertas militares com frequência… Ao longo dos três dias seguintes, a China mandou outros 111 aviões. Em resposta, Taiwan lançou jatos, fez avisos de alerta e rastreou as aeronaves chinesas com sistemas de mísseis. O ministro da Defesa da ilha, Chiu Kuo-cheng, qualificou o evento como “a situação mais difícil que encarei nos mais de 40 anos de minha vida militar”.
Alarmismo sensacionalista, ou ameaça real?
Recorramos à História. Permitam, porém, os amigos que a este respeito eu dê meu testemunho pessoal. Justifica-me, acredito, o fato de eu ter servido em ambos os postos ao longo da minha carreira, maior tempo na Embaixada em Pequim e menor tempo e posteriormente (porém por duas vezes), no “Escritório Comercial do Brasil em Taipé”, fórmula encontrada pelo governo brasileiro para manter relações com a Ilha quando em 1974 transferimos o nosso reconhecimento diplomático para o Continente.
Foi em 08 de junho de 1995, quando eu servia em Pequim, que o então Presidente (com, ou sem “aspas”) de Taiwan, Lee Teng-hui iniciou a sua “histórica visita” – como os taiwaneses a chamam – aos Estados Unidos, com o objetivo – formal – de dar uma palestra na Universidade de Cornell, sua “Alma Mater”. Essa visita, a primeira de um mandatário de Taiwan, ainda que qualificada como “privada” causou reação exacerbada das autoridades de Pequim (e, como “bônus”, grande embaraço para o então-Presidente Bill Clinton). Na ocasião, Lee afirmou que seu “país estava pronto e disposto a assumir mais responsabilidades para ajudar a solucionar os problemas do mundo, e que a China e Taiwan precisavam cooperar na busca de uma maneira de se reunir pacificamente” (sic). A esta visita seguiu-se uma segunda, em março de 1996, às vésperas das eleições presidenciais em Taiwan.
Foi um pandemônio! A cúpula do Partido Comunista Chinês ameaçou mobilizar o Exército de Libertação Popular para conter os “arroubos libertários da Ilha rebelde”; e o ELP realizou em duas ocasiões, manobras intimidadoras no Estreito de Taiwan. A unidade da China tornou-se tema obsessivo nas conversas da comunidade diplomática em Pequim. Nós nos perguntávamos se não transcorridos, então, dez anos das convulsões de Tian An Men, a liderança chinesa estaria disposta a novamente afrontar a opinião pública mundial para conter o que entendia constituir uma ameaça à unidade da China.
Isto rendeu a minha tese no Curso de Altos Estudos/CAE do Itamaraty, intitulada “China e Taiwan, Cenários para a Diplomacia Brasileira”. Nela distingui três cenários: 1) a confrontação; 2) a negociação; e 3) a emergência de um “status quo” consensual, corolário da segunda hipótese. Isto porque eu pressentia que a retórica alarmista não se coadunava com a dimensão – internacional, inclusive – das consequências que uma real confrontação poderia desencadear.
Para matizar a disputa, aliás, já em 1988 o governo de Pequim havia estabelecido o “Escritório de Assuntos de Taiwan”, que responde ainda hoje pela definição e implementação de diretrizes e políticas relacionadas a Taiwan, sob a direção do próprio Conselho de Estado da RPC. Taiwan fez o mesmo: criou a “Straits Exchange Foundation” (SEF), instituição nominalmente não-governamental, mas liderada diretamente pelo Conselho de Assuntos do Continente, um instrumento do Yuan Executivo, isto é, pelo próprio governo. Ou seja, os dois lados têm canais formais diretos para dirimir seus litígios, e isto desde 1988…mas…
Nas minhas andanças por Taiwan, em 2009/10, eu perguntava às pessoas de todas as idades qual era o sentimento delas com relação ao que Deng Xiaoping julgava ser a “herança inacabada” da História compartilhada. Ele afirmava que esta questão deveria ter sido solucionada por Mao Zedong e Chiang Kai-shek logo de início. O hiato político, segundo ele, aguçava-se com o decorrer do tempo, a ponto de poder torná-la insolúvel pelos meios “normais”. É o que está acontecendo, como pude constatar. Quanto mais o tempo passa, mais as duas sociedades se distanciam, e à medida que compartilham cada vez menos a História e o destino comuns, menos os taiwaneses se identificam com os valores do Continente, sobretudo as gerações mais novas, que nenhum contato tiveram com os continentais e a respeito dos quais alimentam enormes preconceitos. Tanto é assim que eu recebia respostas díspares das pessoas: os mais velhos – sobretudo os saudosistas do expatriado “Kuomintang” – ainda se sentiam de certa forma ligados à “pátria comum”; os mais jovens, entretanto, afirmavam fazerem parte ancestralmente da civilização chinesa, porém com História e valores contemporâneos absolutamente distintos.
Entretanto, se pesquisarmos as relações econômico-comerciais entre os dois lados do Estreito vamos ter a surpresa de constatar que Taiwan é, atualmente, um dos maiores investidores no Continente. Entre 1991 e o final de março de 2020, esses investimentos referiram-se a 44.056 operações, totalizando US$ 188,5 bilhões. Em 2019, o valor do comércio intra-estreito foi de US$ 149,2 bilhões. O crescimento do PIB de Taiwan em 2020 foi sustentado principalmente pelo aumento do superávit comercial e do investimento interno. E as exportações taiwanesas atingiram o percentual recorde de 4,9% em 2020, com a China (Hong Kong, inclusive) respondendo por cerca de 44% delas, um aumento de 12% em relação a 2019. Isso faz do Continente o principal parceiro comercial da Ilha e o fator-chave desse superávit comercial!
Dilema? Ao mesmo tempo “Ilha Rebelde” e maior parceiro comercial? Aplicar-se-ia o ditado “inimigos…inimigos…negócios à parte?” Sabedoria oriental, que o Ocidente não entende e vê “gigantes em moinhos de vento”?…
Neste espírito, seriam estes exercícios aéreos recentes ao largo do Estreito de Taiwan, nas celebrações do 110º aniversário da Revolução de 1911 – efeméride comum que celebra o final de um período nefasto da História da China, a queda da dinastia Qing, responsável pelos momentos trágicos das duas Guerras do Ópio e do “Século das Humilhações” – mais uma “fórmula” para mostrar à “Ilha Rebelde”, a exemplo do que ocorrera em 1995, quem tem o poder, sobretudo neste momento que o “Partido Progressista Democrático” (DPP), atualmente no governo, tem cunho “separatista”?…Sabemos, de sobejo, que a unidade da China é pilar inabalável do conceito que ela tem de sua – a palavra me parece correta – civilização. E isto é inegociável, tenho absoluta convicção.
Frente a este dilema – ou desafio – muitos em Taiwan argumentam que a dependência econômico-comercial com relação ao Continente indica que a abordagem de manter Pequim à distância enquanto a Ilha busca uma aliança mais estreita com os Estados Unidos frente à assertividade do Presidente Xi Jinping é apenas retórica, na medida em que a Ilha, afinal, depende do Continente para a sua prosperidade. Neste contexto, será que a manifestação da Presidente Tsai Ing-wen, de que “ninguém obrigaria a população taiwanesa a se curvar à pressão chinesa” poderia chegar até a uma etapa mais belicosa? E, nesta hipótese, será que os Estados Unidos, que pelo “Taiwan Relations Act”, de 1979, se comprometeram com a segurança e incolumidade de Taiwan, arriscariam elevar as tensões a tal patamar, com as imagináveis e terríveis consequências regionais e mundiais?
São múltiplas as variáveis desta equação. Por isto, volto à minha constatação de 1995… O que está em jogo é excessivamente perigoso para todos. Alianças e pressões externas não vão resolver uma herança que, a meu ver, somente será compartilhada quando os dois herdeiros chegarem a um condomínio do poder, talvez numa fórmula confederada. Deng tinha razão…e a paciência oriental é elástica…seria o restante “jogo de cena”?