ISSN 2674-8053

China e Taiwan, a história inacabada (ii)

Polemizando…

O Estadão de hoje noticia laconicamente, num rodapé de página, uma questão que tem significado importantíssimo para os dois herdeiros de um dos mais dramáticos espólios da História do pós-colonialismo: a disputa entre a República Popular da China (RPC) e a República da China (ROC) pela representação legítima da China perante a comunidade internacional:

“A NICARÁGUA ANUNCIOU ONTEM QUE ROMPEU AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS COM TAIWAN E AGORA, PARA O GOVERNO DE DANIEL ORTEGA SÓ EXISTE UMA CHINA ,SEGUNDO DECLAROU SEU CHANCELER, DENIS MONCADA. “A REPÚBLICA POPULAR DA CHINA É O ÚNICO GOVERNO LEGÍTIMO QUE REPRESENTA TODA A CHINA , E TAIWAN É UMA PARTE INALIENÁVEL DO TERRITÓRIO CHINÊS, DISSE MONCADA”

O que parece ser um tema distante da nossa realidade pode trazer, na verdade, consequências nefastas para todos, por poder dar origem a uma série de desdobramentos complexos para o equilíbrio da região da Ásia-Pacífico, e por consequência de todo o planeta: a crescente diminuição do número de países que reconhecem Taiwan como legítimo representante da China. O anúncio de hoje deixa agora apenas um pouco mais de uma dúzia -14, na verdade – de Estados que mantêm relações diplomáticas oficiais com a Ilha, alimentadas por altos custos financeiros para Taipé. A maioria deles está nas Américas – Haiti, Honduras, Paraguai, Saint Vincent e Granadinas, Saint Kitts e Nevis, Santa Lucia e Belize. Na África, apenas Essuatíni (ex-Suazilândia) ainda mantém fidelidade à Ilha. O restante é composto por pequenos países da Polinésia e Micronésia – Tuvalu, Nauru, as Ilhas Marshall e Palau. Esta tendência tem-se acelerado nestes últimos anos: em 2017, eram 20 os países que reconheciam Taiwan; em 2018, eram 17; em 2019, 15; e finalmente, neste ano, 14. Agora, com a saída da Nicarágua, passam a ser 13.

A questão é como Taiwan sobreviverá como “país” reconhecido internacionalmente.De acordo com o Direito Internacional Público, para um Estado ser considerado como tal é imprescindível a existência de cinco elementos: 1) população, ou seja, o conjunto de indivíduos unidos por laços comuns; 2) território, a base física ou espacial onde o Estado exerce com exclusividade a sua soberania; 3) governo autônomo e independente; 4) finalidade, traduzida na ideia de o Estado perseguir um fim; e, finalmente 5) capacidade de entrar em relações com os demais Estados.

Uma leitura “academicista” nos leva a concluir que a ilha possui todos estes pré-requisitos, mas a manter-se esta tendência disruptiva, poder(á)ia chegar o dia em que a República da China não será mais reconhecida por nenhum país e escapar-lhe a personalidade jurídica para interagir na qualidade de Estado com outros Estados. Faltar-lhe-ia este quinto elemento, que configura a soberania.

E aí?

Como se sabe, o Partido Comunista Chinês considera Taiwan como parte inseparável de seu território. Pequim se recusa a manter laços diplomáticos com qualquer país que reconheça Taiwan, e passou grande parte dos últimos quarenta anos tentando isolar a Ilha. O seu crescente protagonismo no cenário internacional parece sinalizar para muitos analistas que a transferência de soberania de Taipé para Pequim é quase irresistível.

Taiwan, por sua vez, tem grande relevância como “país”. Constitucionalmente, a ROC não renunciou à reivindicação de que é o único governo legítimo de toda a China, embora, obviamente, não consiga transformar esta retórica em realidade devido à disparidade de forças. Ainda assim, alguns de seus ex-mandatários, como os presidentes Lee Teng-hui e Chen Shui-bian, mantiveram o discurso do partido Kuomintang – que tem sua raiz no continente – de que a República da China é um país soberano e, portanto, de que não há necessidade de uma declaração formal de independência.

Em termos demográficos, sua população, estimada em cerca de 23,5 milhões de pessoas, é maior que vários países europeus, por exemplo. E a sua rápida industrialização e crescimento na segunda metade do século XX angariou-lhe a alcunha de o “Milagre de Taiwan”. Fruto deste empenho, a Ilha é considerada um dos “Quatro Tigres Asiáticos”. Sua economia, de cunho capitalista, é impulsionada pelas exportações, com a diminuição gradual do envolvimento do Estado e, sobretudo, com grande ênfase no comércio exterior. Fruto disto, a Taiwan ocupa atualmente o 21ª lugar entre as maiores economia do planeta. Sua indústria de tecnologia desempenha papel-chave no cenário global. O crescimento real do produto interno bruto foi, em média, de 8% durante as últimas três décadas, com foco nas exportações, promovidas sobretudo por empresas de portes médio e pequeno. Fruto destas práticas, o superávit comercial é substancial e as reservas externas são as terceiras maiores do mundo.

É neste contexto que desde o início da década de 1990 os laços econômicos com o Continente têm sido cada vez mais intensos… e prolíficos. Na verdade, a República Popular da China é o principal parceiro comercial da República da China, que investe maciçamente nas indústrias do Continente. Por este motivo, cerca de 10% da força de trabalho taiwanesa trabalha na China continental, muitas vezes no comando de suas próprias empresas. Isto leva vários analistas a afirmar que a economia da Ilha está cada vez mais dependente da República Popular.

Como escamotear esta realidade?

Entretanto, sob o mandato do presidente Xi Jinping, as relações entre Taipei e Pequim vêm se deteriorando a níveis não vistos há décadas. Conforme postei anteriormente, em outubro passado aviões militares da RPC fizeram manobras ameaçadoras nos espaços aéreos fronteiriços ao largo do Estreito de Taiwan. Enquanto isto, os Estados Unidos têm procurado levar reforços à Ilha em cumprimento ao “Taiwan Relations Act”, de 1979, pelo qual Washington comprometeu-se com a sua segurança, consubstanciado por grandes vendas de armamentos, visitas de alto perfil de autoridades americanas e uma retórica cada vez mais incisiva (“beligerante”?) do Presidente Joe Biden na defesa da incolumidade da República da China.

Qual será o desfecho? Em minhas pesquisas eu antevi três possíveis cenários: 1) declaração unilateral de independência da parte de Taiwan, com confrontação bélica de consequências incalculáveis, pelo envolvimento de forças alienígenas no teatro de guerra, numa região do planeta particularmente sensível; 2) a anexação pelo Continente, tampouco provável, apesar da retórica de Pequim, devido à resistência da população taiwanesa e à mobilização da comunidade internacional; e 3) a mais plausível, para mim, a negociação, à espera de que o desenrolar da História acabe por equacionar a convivência entre os dois lados do Estreito, talvez na forma de uma Confederação, a exemplo da “Commonwealth” britânica. Esta seria a solução mais sensata, a meu ver, e a mais “asiática” pela ênfase no arquétipo confucionista da “busca da harmonia”.

Deng Xiaoping tinha bem razão quando afirmava que Mao Zedong e Chiang Kai-shek deveriam ter buscado resolver a questão logo de início. Quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna encontrar uma solução para este desafio…

To be continued (certamente…)

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do “The Guardian” abaixo:

https://www.theguardian.com/world/2021/dec/10/nicaragua-cuts-ties-with-taiwan-and-pivots-to-china?fbclid=IwAR0cKkTN3u3sKcIWygduOwtrTQb8FWpak5QVeoqkWCNGK0mPaqd7rI_fUjk

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.