ISSN 2674-8053

O Dragão ameaça…

The pretty orange and red coloured dragon weaves through the crowds of people in Liverpool’s Chinatown chasing a pearl during Chinese New Year celebrations.

“Pintou o horror” no meio acadêmico e na mídia ocidental com relação à “ameaça” da China!

Somente nestes últimos meses têm proliferado matérias, reflexões, notícias, debates, em vários veículos acadêmicos e da mídia internacional alertando para a necessidade urgente de o Ocidente contra-arrestar a emergência do “dragão chinês”. A última edição da Foreign Affairs e o site “Project Syndicate”, entre outros veículos, estão repletos de análises neste sentido.

Muitas delas parecem aceitar o que lhes parece inevitável: o ocaso da hegemonia americana, e do Ocidente. Cito, a este respeito, trecho da matéria “Present at the Re-creation?” da ex-Presidente do “Carnegie Endowment for International Peace”, Jessica Matheus, na mais recente edição da “Foreign Affairs”, onde ela afirma que “um retorno ao status quo pré-Trump não é possível. O mundo — e os Estados Unidos — mudaram demais. E ainda que saudar o retorno da hegemonia americana (com a eleição de Biden – grifo meu) possa parecer reconfortante para os americanos, isto revela, na verdade, o grau da surdez do tom que isto soa para o resto do mundo… Quando as pessoas em outros lugares olham para o histórico de Washington nas últimas duas décadas, elas não veem uma liderança confiável. O que veem, em vez disso, é uma série de desastres de autoria de Washington, entre eles a invasão do Iraque em 2003 e a subsequente desestabilização de grande parte do Oriente Médio, e a crise financeira global de 2008. Durante essas décadas, Washington também deu prosseguimento a uma guerra ineficaz no Afeganistão, uma política incoerente na Síria, e intervenções humanitárias mal fundadas, mais notavelmente na Líbia”…

Prosseguindo, a professora Matheus assinala que entre os principais desafios da política externa de Joe Biden “está a necessidade de uma abordagem equilibrada e não ideológica para com a China. O crescente poderio militar de Pequim, suas manobras provocatórias no Mar do Sul da China, suas políticas cada vez mais repressivas (incluindo abusos flagrantes de direitos humanos contra uigures em Xinjiang e uma repressão aos ativistas pró-democracia em Hong Kong), e a subtração de informações criticamente importantes sobre o surgimento do novo coronavírus, conformam um cenário ameaçador. Os Estados Unidos, entretanto, não têm escolha a não ser desenvolver uma estratégia de convivência com este poder econômico e militar em constante ascensão; mesmo que “o número de americanos com visão desfavorável da China tenha aumentado de 47% no início da presidência de Trump para 73% no outono passado, de acordo com o Pew Research Center”.

Michael Green, professor da “Georgetown University’s School of Foreign Service”, e Evan Medeiros, professor de Estudos Asiáticos do “Asia Group”, afirmaram na matéria “Can America Restore Its Credibility in Asia?” no Project Syndicate que ”o presidente Joe Biden entrou na Casa Branca determinado a restaurar a confiança do mundo nos Estados Unidos. Esta tarefa é particularmente importante na região do Indo-Pacífico, que se tornou tão central para a geopolítica como a Europa foi durante a Guerra Fria. A presença, influência e credibilidade dos Estados Unidos na região estão enfraquecidas, e restaurá-las exigirá que Biden emerja de um buraco profundo”.

Segundo os dois analistas, é chegada a hora de os Estados Unidos e seus parceiros europeus aliados construírem uma estratégia compartilhada para enfrentar este cenário. Para tanto, contam com que a percepção da Europa crescentemente negativa com relação à China; ela “endureceu” nestes últimos anos, com a UE chamando a China de “rival sistêmica”; e grandes atores, como a França e a Alemanha, adotaram estratégias seguindo visões próprias. Segundo os dois “scholars”, os Estados Unidos e a Europa compartilham amplamente as mesmas preocupações sobre as abordagens chinesas com relação à economia, aos direitos humanos e às mudanças climáticas, por exemplo. Neste cenário, as iniciativas conjuntas sobre temas como tecnologia 5G ou regras de privacidade de dados sinalizariam a Pequim que os Estados Unidos e as potências europeias estão unidos em torno dos princípios de livre mercado, da governança democrática e da resolução pacífica das disputas. Entretanto, para eles, “manter essas coalizões exigirá uma postura de estadista de Biden e apoio mútuo diante da imaginável pressão econômica chinesa. Assim, quanto mais eficazes forem esses esforços, mais os Estados Unidos e seus aliados devem estar preparados para a reação de Pequim, tanto retórica quanto econômica. Por outro lado, há que se levar em conta os interesses das empresas ocidentais no imenso mercado chinês. E, ademais, Washington não pode ignorar seu papel único de garante central da segurança regional — um papel que a administração Biden deve redobrar para destacar a capacitação dos EUA de atuar na questão cada vez mais sensível dos litígios territoriais no Mar do Sul da China.

A este respeito, para Green e Medeiros, no que toca à competição econômica, Washington não pode mais contar com o tamanho e a atração gravitacional de sua economia ou a pujança do seu setor privado para persuadir os países a agir segundo as regras e os sistemas internacionais que defende, pois a China está substituindo rapidamente os Estados Unidos como a principal fonte de investimento e de demanda final para as exportações asiáticas. Com isto, está-se tornando o ponto de referência econômico para os governos da região. Por exemplo: a partir de 2020, o Sudeste Asiático, em vez dos Estados Unidos ou da Europa, tornou-se o maior parceiro comercial da China. Cabe lembrar que nos últimos anos, a região concluiu dois amplos acordos comerciais — o “Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Trans-Pacífico” (CPTPP) e a “Parceria Econômica Integral Regional” (RCEP) — nenhum dos quais inclui os Estados Unidos; isto mesmo que muitas práticas chinesas conflitem com – e comprometam – os interesses das economias do Indo-Pacífico.

Esta postura de certa forma “resignada” diante do que parte da academia e opinião pública entende ser o futuro das relações entre os hegemons mundiais, encontra, entretanto, a resistência de alguns analistas. Robert Kagan, membro da “Stephen and Barbara Friedman Senior Fellow at the Brookings Institution”, afirma que “a capacidade de poder global dos americanos excede a percepção que têm do seu lugar e papel no mundo. Ainda que tenham enfrentado os desafios do nazismo e do imperialismo japonês, do comunismo soviético e do terrorismo islâmico radical, eles nunca consideraram esse ativismo global como normal. Mesmo na era da Internet, mísseis de longo alcance e uma economia global interdependente, muitos americanos mantêm a psicologia de “povo vivendo isolado num vasto continente, intocado pela turbulência mundial”. Entretanto, “os americanos nunca foram isolacionistas”, afirma Kagan. “Em tempos de emergência, eles têm sido persuadidos a apoiar esforços extraordinários em lugares distantes. Mas eles consideram isto como respostas excepcionais a circunstâncias excepcionais. Eles não se veem como o principal defensor de um certo tipo de ordem mundial; eles nunca abraçaram esse papel “indispensável”.

“Esta abordagem sempre repetida, confundiu e enganou aliados e adversários, muitas vezes a ponto de estimular conflitos que poderiam ter sido evitados pelo “enforcement” claro e constante do poder americano e influência a serviço de uma ordem mundial pacífica, estável e liberal. A riqueza e a relativa invulnerabilidade que tornaram os Estados Unidos capazes de lutar grandes guerras e impor a paz na Europa, Ásia e Oriente Médio, simultaneamente os fizeram questionar a necessidade, a conveniência e até mesmo a moralidade de fazê-lo. Com os Estados Unidos fundamentalmente seguros e autossuficientes, por que eles precisavam se envolver em conflitos a milhares de quilômetros de suas costas? E que direito tinham?”, questiona o Prof. Kogan.

Para ele “a questão não é se os Estados Unidos ainda são capazes de prevalecer em um confronto global, “quente” ou “frio” (em alusão à Guerra Fria, grifo meu), com a China ou qualquer outra potência “revisionista”. A verdadeira questão é se os piores tipos de hostilidades podem ser evitados, se a China e outras potências podem ser encorajadas a perseguir seus objetivos pacificamente, limitar a concorrência global aos universos econômico e político e, assim, poupar-se e ao mundo dos horrores de uma próxima grande guerra ou mesmo confrontos ainda assustadores de outra guerra fria”… “Talvez os chineses, estudantes cuidadosos da história que são, não cometerão o erro que outros cometeram em julgar mal os Estados Unidos. Realistas, liberais internacionalistas, nacionalistas conservadores e progressistas parecem imaginar que sem Washington desempenhando o papel que desempenhou nos últimos 75 anos, o mundo ficará bem, e os interesses dos EUA serão tão bem protegidos. Mas nem a história recente nem as circunstâncias presentes justificam tal idealismo. A alternativa à ordem mundial americana não será um mundo de direito e instituições internacionais ou o triunfo dos ?ideais iluministas ou o fim da história. Será um mundo de vácuos de poder, caos, conflito e erro de cálculo — um lugar pobre, de fato.” (sic)

Será?

Estaremos enfrentando uma cissiparidade de mundos, e finalmente chegando à tal bipolaridade Ocidente/Oriente, que nós, que vivemos os tempos traumáticos da Guerra Fria, recordamos com tanta apreensão?… Eu estava em Park Rapids, EUA, como “exchange student”, em 1962, e vivi as tensões absurdas da Bahia dos Porcos. Uma ameaça de hecatombe universal assusta. Claro que não é este o caso, mas a paranoia, se levada a extremo, pode causar severos desgastes nas relações internacionais.

Uma coisa é certa. A realidade se apresenta como é, a questão é adaptá-la à nossa realidade, brasileira. “Tupinicamente” falando, a nossa paranoia “made in Brazil” do “comuna virus” e do “China bashing” só poderá causar-nos danos. A briga é de “cachorro grande”…talvez o mais inteligente seria aproveitarmos das oportunidades que ela nos abre para também abrirmos os nossos espaços, onde eles se apresentarem: é o tal do “pragmatismo responsável” do Silveirinha, nosso maior – e saudoso – Chanceler. Que o digam os 66% do nosso superavit comercial com a China!

Abaixo está a matéria do Estadão sobre as nossas relações comerciais com a China. Sugiro aos amigos que leiam:

A ascensão do comércio com a China – Opinião – Estadão

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,a-ascensao-do-comercio-com-a-china,70003625733

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.