ISSN 2674-8053

A tragédia no Japão

Shinzo Abe, ex-Primeiro Ministro do Japão – Foto JOHN THYS / AFP

O assassinato do ex-Primeiro-Ministro do Japão, Shinzo Abe, que chocou o mundo, levanta questões profundas no seio da sociedade e governo japoneses contemporâneos. Questões além da política estrito senso, a meu ver, também indentitárias no sentido amplo do que é “ser japonês” num país que permaneceu fechado para o mundo durante quase trezentos anos durante o xogunato Tokugawa, invadiu os seus vizinhos no final do século XIX e início do XX, foi agressor durante a II Guerra Mundial e ao seu final, mesmo derrotado, tornou-se a segunda maior potência econômica do planeta… e vive hoje um processo de percebida estagnação e “despopulação”.

Abe não representava apenas a si mesmo, mas toda uma dinastia política que atravessou o século XX. Seu pai, Shintaro Abe, foi um dos principais membros do “Partido Liberal Democrata” (PLD), que desde o final da II Guerra Mundial domina, com brevíssimos hiatos, a política nacional, e chegou a ocupar o cargo de Ministro das Relações Exteriores, de 1982 a 1986. Seu avô, Kan Abe, teve por sua vez, um papel significativo no período da II Guerra Mundial, quando, como membro da Dieta – o parlamento – empenhou-se pelo término do conflito. A “facção” Abe, que é como se define seu grupo parlamentar dentre as várias correntes que compõem o PLD – um “partido de partidos”- tem desempenhado um papel protagonista na Dieta.

Abe mesmo serviu quatro mandatos como Primeiro-Ministro de seu país. Era membro do grupo nacionalista “Nippon Kaigi”, ultraconservador e de extrema direita, e a maior organização de lobby não-governamental do Japão. O grupo, por meio de suas afiliadas, permanece influente tanto na esfera do legislativo quanto do executivo do governo japonês.

Segundo transpirou na imprensa, uma das razões que teriam motivado o assassino, que já integrou as Forças de Auto-Defesa – título que define o estamento militar do Japão – a cometer o atentado foi o ativismo do ex-Primeiro-Ministro no sentido de alterar o texto do artigo 9º da Constituição japonesa, também conhecida como “Constituição do Pós-guerra” (戦後憲法 Sengo-Kenpō) ou Constituição pacifista (平和憲法 Heiwa-Kenpō), que impede o país de praticar atos de agressão externos. Como se sabe, este texto constitucional foi redigido sob a supervisão do General Douglas MacArthur, Comandante Supremo das Potências Aliadas durante a ocupação do Japão após a Segunda Guerra Mundial, e “imposto” ao país derrotado.

Este compromisso basilar está inscrito no texto constitucional como sendo do próprio povo japonês e não de governo: é, portanto pétreo e atemporal. Os traumas do holocausto nuclear de Hiroshima e Nagasaki ainda impedem, transcorridos quase oitenta anos do final da guerra, que a grande maioria da população mude de opinião a este respeito. Esta não era, porém, a convicção de Abe, preocupado com a situação volátil da região, principalmente diante da presença mais assertiva da China no leste do Pacífico e no Mar do Sul da China, além da belicosidade dos norte-coreanos. Foi este um dos desafios principais, senão o mais sensível, da política externa da sua gestão… e um dos seus “fracassos”: o que ele alcançou foi relativizar este impedimento e conseguir que as tropas japonesas participem como suporte nas manobras das tropas dos aliados estrangeiros, mas não das ações de combate.

Shinzo Abe será igualmente lembrado por sua política das “Três Flechas”, tecnicamente conhecida como “Abenomics”. Recapitulando: quando tomou posse no seu quarto e último mandato como Primeiro-Ministro, em 2014, ele encontrou a economia estagnada, que seu antecessor e parceiro político, Junichiro Koizumi, tentara estimular. Explico-me: entre as décadas de 1960 e 1980, o crescimento da economia mundial foi muito expressivo: uma média de 10% na década de 1960, de 5% na década de 1970, e 4% na década de 1980. Ao final deste período, o Japão havia-se transformado numa economia de altos salários, e simultaneamente de alto nível de poupança da população, seguindo a tradição das famílias japonesas. Entretanto, este crescimento desacelerou acentuadamente no final da década de 1990 após o colapso da bolha de preços dos ativos japoneses em todo o mundo. Como consequência, o governo viu-se compelido a investir maciçamente em programas de obras públicas para estimular a economia e preservar o índice de emprego da população. O Japão passou, então, a registrar enormes déficits orçamentários para financiar estes programas. Contrariamente ao planejado, essas políticas levaram o país a um persistente processo deflacionário em inúmeras ocasiões, entre 1999 e 2004.

Ao tomar posse, Abe transformou a economia no foco prioritário do seu governo. Seu intuito era reverter a recessão que assombrava a economia e estabelecer as bases para um crescimento sustentável de longo prazo. Este foi o objetivo da política definida como das “Três Flechas”: 1) política monetária agressiva; 2) consolidação fiscal; e 3) uma estratégia de crescimento para uma população cada vez mais envelhecida. A este respeito, nenhum outro país experimentou um rápido crescimento de aposentados como o Japão; nesse contexto, estimular o consumo da população passou a ser prioridade absoluta.

Inicialmente, duas destas “flechas” deram certo: um estímulo fiscal maciço impulsionou o crescimento do país, e a flexibilização das taxas de juros finalmente derrotou a persistente deflação. A idade oficial de aposentadoria dos funcionários públicos passou a aumentar gradualmente de 60 para 65 anos, até 2031, e a da aposentadoria para os trabalhadores do setor privado para 70 anos. Entretanto, ainda que a “abenomics” o tenha impulsionado, o crescimento econômico não ocorreu no ritmo que o país experimentara no “boom” do pós-guerra, e o tamanho da economia ainda permanece inferior à meta estabelecida pela administração Abe.

Com sua morte e o fim do “xogunato” Abe encerra-se o mais longo ciclo de estabilidade na governança do Japão contemporâneo; muito devido à sua liderança, que buscou imprimir sua marca pessoal na gestão, sobretudo no que toca a dois temas fundamentais. O primeiro é a mudança acelerada do cenário regional – e mundial -, impulsionada pela liderança cada vez mais inconteste da China, pela emergência dos países do sudeste asiático e pelas proezas tecnológicas dos “chaebols” empresariais sul-coreanos que invadem mercados mundo afora e deslocam “gigantes” americanos e europeus, e alguns japoneses também;. é claro, sem nos esquecermos das “travessuras” missilísticas do vizinho norte-coreano.

Outro grande desafio que o Japão “pós- Abe” deverá enfrentar, segundo seus críticos, é equacionar o percebido fracasso da sua política econômica, que fora alardeada como a mola motora que resgataria o país de anos de crescimento anêmico. Para estes, a “política das três flechas” deixou como “espólio” antes um alerta para outros países ricos “envelhecidos”, mormente os europeus: o de que suas populações, com abundância de capital e excesso de poupança, instaladas num padrão de vida razoavelmente homogêneo e na vigilância xenófoba contra os imigrantes, estão sendo crescentemente “assaltadas”, tanto fisicamente pelos refugiados do chamado “Terceiro Mundo” quanto economicamente pelo ímpeto desenvolvimentista, tecnológico inclusive, dos seus “ex-vassalos”. A população japonesa, cada vez mais idosa e recalcitrante em abrir-se á imigração estrangeira que possa cobrir o déficit da sua crescente “despopulação”, encaixa-se neste paradigma.

Neste contexto, o principal “handicap”, para os analistas, reside na arena internacional, sobretudo na vizinhança regional. Abe se desempenhava com desenvoltura nesta esfera, e havia estabelecido um leque abrangente de relacionamentos com os demais líderes mundiais, sobretudo com Donald Trump, que lhe dava respaldo – e conivência – na sua “disputa” com Xi Jinping pelo poder regional. Segundo eles, Abe-san conseguiu encontrar um delicado equilíbrio diplomático entre a China e os Estados Unidos. Mas, à medida que as tensões sino-americanas continuam, e até aumentam na presidência de Joe Biden, seus sucessores terão maior dificuldade em evitar tomar partido, especialmente em questões tecnológicas e temas afetos à segurança. Ambos – EUA e China – são fundamentais para a paz e a prosperidade do Japão: a América é o fiador da sua segurança e o seu segundo maior parceiro comercial, enquanto que a China é seu maior parceiro comercial e o poderoso “next door neighbor”.

Neste cenário em mutação constante, a figura gigante de Shinzo Abe permanecerá durante muito tempo como referência não somente para o Japão, senão para o mundo inteiro!

Descanse em paz…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.