
A arquitetura climática internacional foi, por décadas, um dos poucos terrenos em que a humanidade parecia capaz de pensar globalmente. Desde a Eco-92, o discurso era claro: o planeta é um só, e seu equilíbrio depende de todos. Mas a retórica de “responsabilidade comum” já não convence. O que se vê, nas palavras recentes de Laurent Fabius — ex-presidente da COP21 e voz respeitada do Acordo de Paris —, é o esgarçamento do multilateralismo climático.
“Devemos lembrar aos Estados seus deveres climáticos — e que são as condições para a própria sobrevivência da humanidade.”
A advertência soa quase como um epitáfio: a promessa de cooperação global rui diante da competição por tecnologia, dos cálculos eleitorais e da desigualdade entre Norte e Sul. A crise não é apenas ambiental — é diplomática, civilizatória, estrutural.
Nos últimos anos, o discurso sobre “emissões líquidas zero” foi capturado por agendas nacionais. A União Europeia fala em liderança moral, mas mantém tarifas de carbono que penalizam exportações do Sul. Os Estados Unidos, embora avancem em inovação verde, mantêm a lógica do poder: quem financia dita as regras.
Enquanto isso, o Sul Global observa que a transição ecológica — vendida como imperativo moral — pode se transformar em novo instrumento de dependência. Quem domina a tecnologia limpa controla o crédito, o mercado e o futuro. Nesse contexto, o clima deixa de ser pauta ambiental e torna-se campo de poder.
O multilateralismo, que deveria equilibrar, está desequilibrando. Os fóruns internacionais produzem compromissos frágeis, as promessas de financiamento evaporam, e o discurso verde se converte em geopolítica cinza.
Diante dessa paralisia, a alternativa não é esperar mais acordos — é redefinir a ideia de cooperação. O Sul Global precisa se ver como sujeito da transição ecológica, e não apenas como paciente da crise.
A Amazônia, o Sahel, o Sudeste Asiático e o Pacífico não são margens do planeta, são seus pulmões e artérias. Mas a linguagem da ajuda externa ainda domina: fala-se em “compensação”, “assistência”, “doação”. O que se propõe aqui é outro léxico: co-responsabilidade, soberania ambiental, parceria horizontal.
O Sul não precisa de benevolência — precisa de voz. E a voz do Sul, quando articulada, muda o tom da conversa global.
A COP30, marcada para Belém, será palco simbólico desse embate. O Brasil tem a chance de mostrar que desenvolvimento e sustentabilidade não são opostos, mas também carrega o risco de se perder no jogo das aparências.
Se o país insistir em se posicionar apenas como “líder moral do clima”, repetirá o discurso europeu em versão tropical. Mas se conseguir construir uma diplomacia do Sul, baseada em cooperação técnica, integração regional e financiamento próprio, poderá transformar a COP30 no início de uma nova gramática global.
O desafio é não cair na armadilha do aplauso fácil — aquele que vem do Norte quando o Sul se comporta como aluno obediente
A crise climática não é apenas questão de urgência — é questão de autoria. Quem escreve o futuro do planeta? Se as potências do Norte não cumprem as promessas e ainda definem as regras, cabe ao Sul globalizar o debate de outro modo: não pela retórica do medo, mas pela política da reconstrução.
O novo universalismo possível não virá da ONU, nem de Davos, nem de Bruxelas. Virá de uma constelação de vozes — da Amazônia ao Saara, de Jakarta a Lagos, de Quito a Pretória — que recusa a velha dicotomia entre desenvolvimento e natureza.
O Sul Global não é a periferia do mundo. É o mundo que sobrou para ser repensado. E talvez, por isso mesmo, seja o único capaz de reinventar a ideia de humanidade em tempos de colapso.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
