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A guinada estratégica dos EUA e o risco de uma tendência autocrática

O discurso do Secretário Pete Hegseth em Quantico, dia 30/09, marcou uma inflexão rara na política de defesa norte-americana. Ao anunciar o fim da “era do Departamento de Defesa” e proclamar que “a única missão é a guerra — preparar-se para travá-la e vencê-la”, ele não apenas trocou uma nomenclatura institucional. Reconfigurou o próprio sentido da presença militar dos Estados Unidos no mundo. Desde 1949, a defesa e a dissuasão eram a base discursiva que orientava a função das Forças Armadas; agora, a ênfase desloca-se para a ofensiva, para a vitória, para a letalidade. Essa transição semântica é, na prática, uma redefinição do que significa ser militar americano: não mais defensor, mas guerreiro.

Essa mudança de identidade veio acompanhada de medidas concretas. A imposição do “padrão masculino mais alto” como requisito universal é talvez a mais explícita ruptura com os últimos dez anos de política de inclusão. Ao aceitar que mulheres possam ser excluídas de funções de combate caso não alcancem esses padrões, o Secretário sinaliza que a diversidade não é mais um valor organizacional prioritário, mas um custo aceitável diante da busca por eficiência combativa. Ao mesmo tempo, a decisão de reduzir os canais de denúncia, encerrar queixas anônimas e blindar comandantes contra acusações de “liderança tóxica” fortalece a autoridade hierárquica em detrimento de mecanismos de proteção e de accountability. Essa lógica pode aumentar a disciplina e a prontidão de curto prazo, mas também concentra poder e reduz os freios institucionais que, em democracias, são fundamentais para evitar abusos.

Outro aspecto do discurso foi a crítica às chamadas “regras de engajamento estúpidas”. Ao prometer “desatar as mãos” dos combatentes, Hegseth relativizou duas décadas de esforços para mitigar danos a civis e alinhar a ação militar às normas do direito humanitário. A prioridade passa a ser a autoridade tática e a liberdade de ação, mesmo que isso implique riscos maiores de arbitrariedade em combate. O gesto tem um peso simbólico: a guerra deixa de ser contida por restrições éticas e volta a ser pensada em termos de violência sem amarras, em que a letalidade é valorizada como fim em si.

Esses elementos combinados sugerem não apenas uma guinada estratégica, mas também uma deriva política. Ao exaltar a “libertação” dos militares das amarras de regras, burocracias e políticas de inclusão, o discurso ecoa retóricas típicas de regimes que flertam com o autoritarismo. A concentração de poder nos comandantes, a desconfiança em relação a canais de controle e a glorificação da força como solução universal apontam para uma tendência mais autocrática no ethos militar. É nesse ponto que a inflexão norte-americana deixa de ser apenas um ajuste de doutrina e passa a ser um sinal político de maior alcance: um país que sempre buscou equilibrar poder bélico com valores democráticos agora parece disposto a priorizar a guerra acima de tudo, mesmo que isso implique o enfraquecimento das instituições que garantem limites ao uso da força.

O discurso de Pete Hegseth, portanto, não é apenas uma reorientação militar. É também um ensaio de reconfiguração política. Ao privilegiar a letalidade e a disciplina rígida sobre a diversidade e a contenção normativa, ele projeta os Estados Unidos em direção a um futuro no qual a eficácia em combate pode se impor sobre as balizas democráticas. A grande questão que resta é se a sociedade americana, suas instituições e seus aliados aceitarão essa guinada ou se reagirão à ameaça de que a guerra, mais do que a defesa, se torne o novo princípio organizador da nação.

Leia a análise detalhada do discurso no artigo Do Departamento de Defesa ao Departamento de Guerra: a redefinição da missão militar dos EUA no discurso do Secretário Pete Hegseth.

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