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Democracias sob pressão e o esgotamento silencioso da representação

A democracia do século XXI enfrenta uma crise que não se anuncia por tanques nas ruas ou discursos autoritários evidentes. O desgaste atual é silencioso, cotidiano e estrutural. Ele se manifesta na ruptura gradual do pacto social, no descrédito generalizado das instituições políticas, na fragmentação das identidades coletivas e na fadiga das narrativas que antes sustentavam a legitimidade dos regimes representativos. Essa corrosão, que ocorre tanto em democracias consolidadas quanto em regimes mais jovens, revela não apenas falhas conjunturais, mas a exaustão de um modelo político cujos mecanismos de mediação parecem cada vez mais incapazes de responder aos anseios sociais.

A primeira camada dessa crise está na desigualdade. Não apenas a disparidade de renda, mas a desigualdade de expectativas, de acesso à informação de qualidade e de capacidade de influência nas decisões públicas. A percepção de que o sistema favorece elites econômicas e políticas alimenta um sentimento de traição nas bases sociais. Em democracias ocidentais como Estados Unidos, Reino Unido ou França, isso se traduziu no crescimento de movimentos que rejeitam o establishment, ora pela extrema-direita, ora por novos populismos de esquerda. Na Ásia e na África, essa mesma desconfiança impulsiona lideranças que prometem romper com a herança pós-colonial, mas muitas vezes acabam replicando padrões autoritários ou clientelistas sob nova roupagem.

Outro vetor decisivo é a erosão das narrativas de futuro. Durante boa parte do século XX, as democracias prometiam progresso, consumo, estabilidade e participação. Hoje, essas promessas perderam credibilidade. O futuro aparece, para muitos, como um espaço de incertezas: mudanças climáticas, transformações tecnológicas que ameaçam empregos, crises migratórias e conflitos culturais minam a ideia de que a democracia liberal é sinônimo de bem-estar. O resultado é uma apatia generalizada, sobretudo entre os mais jovens, que se sentem alienados por um sistema político que lhes parece obsoleto. Isso é visível tanto nas baixas taxas de participação eleitoral na Europa quanto no crescimento de movimentos de protesto descentralizados em países como Líbano, Chile, Nigéria e Tailândia.

Os partidos políticos, tradicionalmente o elo entre sociedade e Estado, estão entre os principais alvos do descontentamento. Muitos se tornaram estruturas fechadas, incapazes de renovação interna, distantes das bases populares e excessivamente adaptados às lógicas eleitorais de curto prazo. Essa crise de representação é visível em contextos tão distintos quanto o Japão, onde o Partido Liberal Democrata domina o cenário político sem oferecer alternativas substanciais, e na África do Sul, onde o Congresso Nacional Africano enfrenta críticas crescentes por não responder às desigualdades que prometeu combater no pós-apartheid.

A mídia e as redes sociais intensificam essa fragmentação. Os algoritmos digitais incentivam a formação de bolhas ideológicas, dificultando o diálogo democrático e exacerbando a polarização. A informação deixou de ser um bem comum para se tornar campo de batalha. A ascensão da desinformação mina a confiança nas instituições, permitindo que teorias da conspiração e radicalismos se consolidem como parte do cotidiano político. O caso das eleições nos Estados Unidos em 2020, com o ataque ao Capitólio em janeiro de 2021, é um exemplo claro desse fenômeno. Mas ele também se expressa em regimes onde a censura e o controle estatal da informação são utilizados para minar a crítica e consolidar hegemonias, como ocorre em países como Hungria, Turquia e, de forma distinta, em Camboja.

Mais grave ainda é o esvaziamento dos espaços públicos de deliberação. A democracia se torna procedural, reduzida a rituais eleitorais que pouco interferem na formulação efetiva das políticas públicas. O cidadão é chamado a votar, mas pouco ouvido no intervalo entre as urnas. Isso contribui para o sentimento de que a política é um jogo de elites, o que alimenta tanto o abstencionismo quanto formas de radicalização. No Brasil, por exemplo, a crescente desconfiança em relação ao Congresso convive com um aumento de iniciativas locais de participação direta, ainda que muitas vezes fragmentadas e com pouco impacto sistêmico.

Essa pressão sobre as democracias não deve ser lida apenas como declínio. Em muitas partes do mundo, a sociedade civil se mobiliza, questiona e propõe novos arranjos. No Senegal, protestos de jovens contra o autoritarismo resultaram em mudanças significativas. Na Coreia do Sul, mobilizações populares derrubaram presidentes envolvidos em escândalos. Em Gana, movimentos cidadãos utilizam plataformas digitais para monitorar gastos públicos e combater a corrupção. Esses exemplos revelam uma busca por outras formas de expressão democrática que vão além da representação tradicional.

No entanto, essa vitalidade precisa ser acolhida por instituições dispostas à transformação. Reformar a democracia não é abandoná-la, mas repensar seus fundamentos. Isso implica reinventar os mecanismos de escuta e decisão, ampliar os canais de participação, enfrentar as desigualdades estruturais e reconstruir uma ideia de futuro comum. Sem isso, o risco é que o esgotamento da representação abra caminho para modelos autoritários — muitos dos quais já se insinuam, não como rupturas abruptas, mas como processos graduais de erosão institucional, normalizados sob o pretexto da eficiência ou da ordem.

O que está em jogo, portanto, não é apenas a sobrevivência formal das democracias, mas sua capacidade de continuar sendo espaços vivos de construção coletiva, onde a política represente mais do que disputas de poder e se reconcilie com a promessa de transformação social.