
Artigo elaborado por Isadora Helena Gabriel De Castro Freire Oliveira e Fernando Rodrigues Antonucci
Introdução
A proposta desse artigo é refletir sobre os planos do gueto, sua formação e modo como pode estar atrelado a um desmantelamento do estado democrático de direito na Dinamarca. Entende-se, nessa lógica, a necessidade de discussão de como esses planos se tornaram oficiais e sua relação com os bairros dinamarqueses formados por imigrantes. Dessa forma, a análise se dividiu em abordagens que buscam esclarecer, primeiramente, como o exercício da cidadania é constituído aos indivíduos a partir da estrutura estatal e como essa mesma estrutura oficializou durante as décadas para que isso ocorresse. Em uma segunda abordagem, discute-se o processo de materialização dos projetos habitacionais e as medidas adotadas pelo governo. Além disso, em um perspectiva conclusiva, relaciona-se as reflexões anteriores às questões raciais e discriminatórias no sistema dinamarquês de forma a criar um distúrbio na estruturalização do estado de bem-estar social neoliberal e ocidental que a Dinamarca e o continente europeu constroem a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial.
Ideia de cidadania dinamarquesa e oficialização do termo gueto
Para abordar de maneira concisa as relações habitacionais e a discriminação na Dinamarca, é necessário compreender os aspectos formadores da definição de cidadania em âmbito nacional. As ações constituintes da projeção do cidadão dentro do organismo social dinamarquês surgem a partir do período entre as décadas de 1890 e 1920 e consolidam-se no pós-Segunda Guerra Mundial (KAPLAN, 2014). Em um primeiro momento, existe uma ideia primitiva do que seria cidadania a partir de um “pragmatismo político” (KAPLAN, 2014), o que formularia na década de 1930 uma maior expansão do que seriam os direitos relacionados ao bem-estar social devido, sobretudo, às discussões sobre o papel do Estado após a Crise de 1929 e o impasse no modelo de Estado liberal norte-americano.
Mais tarde, a solidificação da cidadania dinamarquesa aconteceria no pós-1945 — é importante reiterar que o período entre guerras foi um fator importante para tal construção. Em um cenário de bipolaridade econômica e cultural entre ocidente e oriente, a Dinamarca, e a Europa como um todo, tratou de corporificar o que seria a democracia neoliberal dinamarquesa e nórdica. Logo, estruturaria-se a “Era de Ouro” (KAPLAN, 2014) e a ascensão social dos conceitos de “universalismo, benefícios generosos e um alto grau de redistribuição” (KAPLAN, 2014). Este ponto incorpora à sociedade dinamarquesa uma concepção de direitos civis individualizada, fora do escopo coletivo.
Sob outra perspectiva, a partir do final do século XX, com a caracterização do sujeito segundo seu hábito trabalhador e a chegada massiva de imigrantes não-europeus – o que levaria, no século XXI, a uma crise migratória no continente europeu -, o exercício da cidadania se projeta na própria ação do cidadão dentro das estruturas democráticas. O percurso de cidadania na Dinamarca é formulado pelo entrosamento do cenário socioeconômico interno e externo, principalmente nos vizinhos nórdicos, constituindo, dessa forma, um lugar respeitado internacionalmente pelos nórdicos como exemplos do Welfare State e sua implementação política e social.
Entretanto, o que coloca em discussão essa figura positiva de bem-estar social é justamente a presença de imigrantes. O gráfico sobre o desenvolvimento de imigrantes em relação à população dinamarquesa (figura 1) demonstra que a crescente onda migratória para Dinamarca, sobretudo de turcos e poloneses (figura 2) devido a fatores sociais, econômicos e políticos que motivaram a saída dessas áreas, e o próprio estabelecimento habitacional desses imigrantes dentro dos limites territoriais dinamarqueses são questões políticas importantes dentro do cenário atual. Compreende-se, logo, que a problemática migratória e seus desdobramentos internos e externos têm sido pontos-chave no funcionamento de atuação política do governo dinamarquês, formulando, assim, a necessidade de desenvolver iniciativas governamentais – que seriam questionadas posteriormente.
Figura 1

(gráfico do site do governo dinamarquês sobre a população imigrante)
Figura 2

Institucionalização das políticas habitacionais discriminatórias
Essa seção pretende analisar os chamados “planos do gueto”, formulados pelo governo dinamarquês sobre as regiões habitadas por imigrantes de forma a relacioná-los com a estrutura político-partidária do país e da Europa. Nessa lógica, o termo “gueto” foi associado a áreas urbanas que continham determinado número de “não-ocidentais”, além de considerar fatores socioeconômicos como os níveis de escolaridade e renda. Essa classificação passou a ser usada oficialmente em relatórios governamentais e como base para políticas públicas, criando uma distinção institucionalizada entre bairros “normais” e “problemáticos”.
O ápice desse processo ocorreu com a aprovação, em 2018, do chamado “Pacote de Leis dos Guetos”, que previa intervenções diretas do Estado em áreas classificadas como “guetos”, incluindo: redução forçada da população imigrante por meio de reassentamentos obrigatórios, demolição de habitações sociais, restrições específicas ao acesso a benefícios públicos, e a imposição de regras diferenciadas de educação e punição penal. As crianças dessas áreas, por exemplo, passaram a ser obrigadas a frequentar programas estatais de “valores dinamarqueses” a partir de um ano de idade, sob pena de corte de benefícios às famílias. Esse processo revela um grau elevado de racialização e territorialização das políticas públicas, em que o lugar de moradia, vinculado a uma suposta origem étnica e cultural, passa a justificar o tratamento desigual por parte do Estado. (TYLER, 2018; NPR, 2020; MÜLLER, 2020; REFUGEES.DK, 2024).
Os Planos do Gueto, em uma macroperspectiva, determinam uma série de ações relacionadas especificamente aos bairros de imigrantes. Dentre tais medidas, cita-se o aumento de carga horária escolar obrigatória para crianças imigrantes sob o argumento de que elas necessitam de uma maior abordagem educacional do que as dinamarqueses, o dobramento de sentenças para crimes em bairros de “gueto” e o impedimento da possibilidade de reagrupamento familiar do exterior (citação indireta, Rosa luxemburgo). Sobre a aquisição de cidadania dinamarquesa, os critérios tornam-se, cada vez mais, limitadores para que imigrantes alcancem o asseguramento dos direitos civis de maneira concreta. Com a necessidade de consolidações linguísticas, de duas a três décadas de moradia na Dinamarca, de emprego ininterrupto e de um teste formulado por questões relacionadas à história dinamarquesa (citação indireta, Rosa Luxemburgo), o sistema nacional age de forma a impedir que os estrangeiros – principalmente aqueles oriundos de camadas mais baixas ou de países em conflito sociopolítico – tornem-se cidadãos efetivos.
A formulação e implementação dos chamados Planos do Gueto na Dinamarca estão fortemente associadas ao contexto político-partidário do país, sobretudo ao avanço de partidos de orientação nacionalista e conservadora. Desde o início dos anos 2000, partidos como o Partido Popular Dinamarquês (Dansk Folkeparti), que, embora não tenha liderado governos, exerceu significativa influência sobre as coalizões de centro-direita no parlamento, contribuindo para o endurecimento das políticas migratórias. A retórica desses partidos é baseada na proteção da identidade cultural dinamarquesa, no combate à criminalidade e na promoção de um nacionalismo excludente, muitas vezes sob a justificativa de “defesa do bem-estar social”.
Essa lógica de atuação impactou profundamente os discursos e políticas públicas dos partidos tradicionais. Mesmo os partidos de centro e centro-esquerda, como os Social-democratas (Socialdemokratiet) passaram a adotar posições mais restritivas em relação à imigração, em resposta à pressão eleitoral e ao sentimento popular de que a integração dos imigrantes seria falha ou desbalanceada. O resultado foi a criação de políticas habitacionais com traços nitidamente discriminatórios, baseadas em critérios étnico-raciais, econômicos e geográficos, mascarados sob a ideia de “integração cultural” e manutenção da coesão social.
Problematização do próprio Estado de bem-estar social: questão racial e nacionalista
A Dinamarca é reconhecida mundialmente como um dos expoentes do modelo nórdico de Estado de bem-estar social, baseado em princípios de universalismo, redistribuição de renda e acesso igualitário a serviços públicos. No entanto, esse ideal tem sido cada vez mais contestado diante da institucionalização de políticas que estabelecem distinções entre “dinamarqueses autênticos” e imigrantes, principalmente não ocidentais. A criação de categorias oficiais como “guetos” e a aplicação de regras específicas a essas populações evidenciam uma contradição interna profunda: ao mesmo tempo em que o país se orgulha de sua tradição democrática e inclusiva, suas políticas públicas têm reforçado critérios racializados e nacionalistas de pertencimento.
O próprio modelo de bem-estar social, que deveria ser inclusivo, vem sendo invocado como justificativa para medidas de exclusão. Argumenta-se que a presença de imigrantes representaria uma ameaça à coesão social e à sustentabilidade do sistema. Com isso, políticas discriminatórias são apresentadas como necessárias para “proteger” o bem-estar social, invertendo completamente sua lógica original de solidariedade universal. A Comissão Europeia já alertou que tais medidas podem violar os princípios da União Europeia, ao segmentar cidadãos com base em sua origem étnica, religiosa ou nacional.
Diversas organizações de direitos humanos, como o Danish Institute for Human Rights e observadores da ONU, denunciaram os efeitos segregacionistas dos “Planos do Gueto”, argumentando que tais práticas comprometem os compromissos internacionais da Dinamarca com os direitos humanos. A atuação de ONGs e de coletivos locais tem sido essencial para denunciar e judicializar casos de despejos, perda de benefícios sociais e tratamento desigual no sistema educacional e penal.
Nesse cenário, pode-se concluir que o próprio Estado dinamarquês fere aquilo que mais valoriza: a universalidade de seus direitos sociais. A cidadania deixa de ser um status garantido pelo Estado de bem-estar e passa a ser uma condição seletiva, ligada a critérios culturais, linguísticos e históricos. A questão racial torna-se, portanto, central na crítica ao modelo: em vez de integrar, o sistema reforça divisões e hierarquias simbólicas que colocam os imigrantes como cidadãos de segunda classe. A questão nacionalista, por sua vez, legitima o fechamento identitário e o endurecimento das fronteiras internas, consolidando um modelo de exclusão travestido de bem comum.
Referências Bibliográficas:
RASMUSSEN, L. B. Dinamarca é acusada de racismo em política habitacional voltada a migrantes. CNN Brasil, 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/dinamarca-e-acusada-de-racismo-em-politica-habitacional-voltada-a-migrantes/. Acesso em: 6 maio 2025.
TYLER, I. Denmark’s ghetto laws are part of a damaging war on difference. The Guardian, 10 jul. 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/10/denmark-ghetto-laws-niqab-circumcision-islamophobic. Acesso em: 6 maio 2025.
DANISH STATISTICS. Indvandrere og efterkommere – befolkning og integration. Danmarks Statistik, 2024. Disponível em: https://www.dst.dk/da/Statistik/emner/borgere/befolkning/indvandrere-og-efterkommere. Acesso em: 6 maio 2025.
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OBSERVADOR. Lei do gueto da Dinamarca pode ir contra direito da UE por ser discriminatória. Observador.pt, 14 fev. 2025. Disponível em: https://observador.pt/2025/02/14/lei-do-gueto-da-dinamarca-pode-ir-contra-direito-da-ue-por-ser-discriminatoria/. Acesso em: 6 maio 2025.
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KAPLAN, J. Citizenship and identity in the welfare state. Critical Social Policy, v. 34, n. 1, p. 45–65, 2014. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/258220584_Citizenship_and_Identity_in_the_Welfare_State. Acesso em: 6 maio 2025.
MÜLLER, J. Denmark’s hardline approach to integration: symbolic policies and the racialization of citizenship. Critical Social Policy, v. 41, n. 1, 2020. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0261018320978504. Acesso em: 6 maio 2025.