
Para quem não está familiarizado com a história econômica dos Estados Unidos, pode parecer distante falar de decisões tomadas há quase um século — mas a década de 1930 guarda um ensinamento poderoso para os dias de hoje. Neste artigo, explico com clareza o que ocorreu naquele período, por que certas escolhas foram feitas, quais foram as consequências e como esse episódio ressoa com o que acontece agora no governo americano.
A década de 1930 nos EUA começou em tragédia econômica. Em 1929, a Bolsa de Valores de Nova York sofreu uma queda abrupta, episódio que entrou para a história como a “quebra de 1929”. Esse colapso financeiro foi o estopim de uma crise mais ampla: bancos faliram, o crédito encolheu, empresários fecharam fábricas e milhões de trabalhadores foram demitidos. A economia americana — e boa parte da economia mundial — entrou em recessão profunda.
Num cenário tão dramático, era inevitável que governantes buscassem remédios fortes. Muitos dos líderes políticos e econômicos acreditavam que seria possível “proteger o mercado doméstico” para atenuar os efeitos externos da crise. Para os setores agrícolas e indústrias mais frágeis, importações — que entravam mais baratas — representavam competição excessiva. Pressões locais pediam uma espécie de escudo contra bens vindos de fora: tarifas mais altas, barreiras ao comércio, proteção indireta.
Foi nesse contexto que, em 1930, o Congresso americano aprovou a chamada Lei Tarifária Smoot‑Hawley. A proposta original favorecia a elevação de tributos sobre produtos agrícolas importados, mas no curso das negociações o escopo foi ampliado de modo a incluir diversos setores industriais. Quando aprovada, a lei impôs tarifas elevadas sobre mais de vinte mil produtos importados, elevando substancialmente os custos alfandegários para bens vindos do exterior.
A justificativa principal era: proteger o trabalhador americano, sustentar a renda dos agricultores, preservar as indústrias locais em meio ao colapso global. Muitos congressistas e entidades econômicas acreditavam que um forte protecionismo seria um escudo defensivo — embora muitos economistas renomados alertassem para os riscos de represália externa.
No momento da decisão, havia resistência técnica. Mais de mil economistas nos Estados Unidos assinaram petições para que o presidente vetasse a lei, apontando os perigos do “efeito dominó” no comércio global. Embora o presidente Hoover tivesse hesitações — chegou a considerar o projeto “obnóxio, extorsivo e vicioso” — ele acabou cedendo à pressão política de seu partido e do lobby industrial.
A promessa de que tarifas altas seriam uma proteção modesta se desfez rapidamente diante da realidade global: vários países retaliaram, aumentando seus próprios impostos à mercadoria americana. Isso causou uma reação em cadeia. Exportações dos EUA foram fortemente reduzidas e mercados cruciais fecharam-se para produtos americanos.
Estudos econômicos estimam que países que retaliaram diminuíram suas compras dos EUA em cerca de 28 % a 32 %. O comércio mundial como um todo despencou: estima-se que entre 1929 e 1934 o volume comercial global caiu cerca de 65 %. Nos EUA, as importações e exportações também caíram expressivamente, aprofundando ainda mais a recessão.
Internamente, o protecionismo não conseguiu estancar o desastre. O desemprego, que já era elevado, escalou: em 1930 era cerca de 8 %, mas anos depois chegou a níveis em torno de 25 %. A produção econômica americana também despencou. Parte significativa da queda se deveu à fraqueza geral da atividade econômica — a crise já caminhava por conta própria —, mas muitos historiadores e economistas acreditam que a política de tarifas elevadas agravou o choque.
Politicamente, o custo foi muito alto para os republicanos. Nas eleições de 1932, Herbert Hoover foi duramente derrotado. Vários senadores e deputados republicanos que apoiaram a Smoot‑Hawley perderam seus mandatos. Alguns estudiosos até apontam que o “fantasma de Smoot‑Hawley” assombrava a votação. Com a vitória de Franklin D. Roosevelt, o eixo da política comercial americana começou a se mover firmemente na direção da liberalização. Uma das primeiras medidas desse novo curso foi a Lei de Tarifas Recíprocas de 1934, que concedeu ao presidente autoridade de negociar reduções tarifárias bilaterais e revogou parte da rigidez protecionista.
A lição historicamente extraída é que, em momentos de crise, o impulso ao protecionismo pode gerar efeitos perversos: encurtar mercados, estimular retaliações, aumentar custos e enfraquecer ainda mais uma economia já combalida.
Voltando ao presente, na virada de 2024 para 2025, a administração americana retomou políticas de tarifas agressivas, sob justificativas de corrigir déficits comerciais e “nivelações recíprocas”. Em abril de 2025, o presidente anunciou a imposição de uma tarifa base de 10 % sobre todos os bens importados dos EUA, além de tarifas adicionais sobre produtos de cerca de 60 países. Essa mudança é referida por analistas como a maior mudança unilateral na política comercial americana desde Smoot‑Hawley.
O governo também assinou memorandos executivos para revisar “práticas não recíprocas de comércio” e adotar tarifas recíprocas estratégicas, alegando que déficits persistentes ameaçam a estabilidade nacional. Já se registram retaliações de parceiros comerciais e especulações sobre efeitos negativos para o crescimento e para os consumidores domésticos.
As semelhanças com os anos 1930 são preocupantes. Hoje como ontem, tarifas mais altas elevam os custos para produtos importados, o que tende a recair sobre consumidores e empresas que dependem de componentes estrangeiros. E, assim como naquela época, a possibilidade de retaliação por parte de parceiros surge como um risco real. O mundo está mais interdependente hoje, o que multiplica os canais de impacto.
Há também uma dimensão política: o partido que por décadas sustentou a bandeira do livre comércio vê-se dividido entre vertentes nacionalistas e a ala liberal clássica. Se essa reviravolta protecionista for percebida como ruptura de identidade, pode incidir em custo eleitoral e perda de confiança. Eduardo debates recentes mostram que a opinião pública americana observa com desconfiança as políticas tarifárias agressivas.
Um ponto distintivo: nos anos 1930 havia menor integração global, cadeias produtivas menos complexas e menor volume de comércio externo em proporção ao PIB. Hoje, empresas integram várias partes mundo afora, insumos cruzam fronteiras e dependem de previsibilidade. Uma mudança abrupta nas regras do jogo pode gerar rupturas mais profundas e rápidas.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
