
Desde a fundação de Moscóvia como núcleo de aglutinação de territórios eslavos orientais, a história da Rússia tem sido marcada pela tensão constante entre centralização e desintegração. Em um país com dimensões continentais, uma diversidade étnica impressionante e regiões separadas por milhares de quilômetros e climas extremos, o governo central sempre desempenhou o papel de eixo organizador, e por vezes impositivo, da unidade nacional. Nos momentos em que esse poder enfraqueceu, a Rússia conheceu revoltas, fragmentações e até colapsos estatais. Essa experiência histórica molda a compreensão contemporânea do poder em Moscou, em especial a figura de Vladimir Putin, cujo governo centralizador é visto por muitos dentro do país como um antídoto contra o risco existencial da fragmentação.
O primeiro colapso relevante da centralização na história russa ocorreu no chamado “Tempo de Dificuldades” (1598–1613), quando, após a morte do czar Fiódor I, a dinastia Ruríquida se extinguiu. Sem um centro de poder legítimo, a Rússia mergulhou em um período de anarquia, fome e invasões estrangeiras, com múltiplos senhores se proclamando líderes e forças polonesas e suecas ocupando partes do território. O caos só foi contido com a ascensão da dinastia Romanov, que estabeleceu uma autocracia restauradora. Esse momento consolidou, no imaginário russo, a ideia de que um Estado fraco não apenas perde autoridade interna, mas também se torna vulnerável à pressão externa e à balcanização.
Outro momento emblemático foi o colapso do Império Russo em 1917. A revolução de fevereiro levou à queda do czar Nicolau II e ao estabelecimento de um governo provisório liberal. Mas a fragilidade dessa transição levou rapidamente à revolução bolchevique em outubro e, na sequência, à Guerra Civil Russa (1917–1922). Nesse período, a Rússia quase desapareceu como unidade política: dezenas de repúblicas independentes ou autônomas foram proclamadas, e potências estrangeiras intervieram diretamente no conflito. Foi com brutal repressão e centralização extrema que o novo governo soviético reconsolidou o território — um processo que custou milhões de vidas, mas restabeleceu o controle sobre as vastas regiões outrora imperiais.
A mais recente e impactante fragmentação do Estado russo ocorreu após o colapso da União Soviética em 1991. A fraqueza do governo central soviético nos anos finais de Mikhail Gorbachev, marcada por reformas descentralizadoras como a glasnost e a perestroika, estimulou movimentos nacionalistas nas repúblicas soviéticas. O resultado foi a independência de 15 nações, incluindo Ucrânia, Geórgia e os Estados bálticos. Mesmo dentro da nova Federação Russa, os anos 1990 foram marcados por um colapso do poder federal. Repúblicas como a Tchetchênia se recusaram a reconhecer a autoridade de Moscou, levando a guerras separatistas sangrentas. Governadores regionais acumulavam autonomia e muitas vezes desafiavam abertamente as ordens do Kremlin. A Rússia chegou a ser chamada de “uma confederação de feudos”, tamanha a perda de controle por parte do centro.
É nesse contexto que se insere o papel histórico de Vladimir Putin. Quando chegou ao poder em 1999, a Rússia enfrentava colapsos fiscais, terror em Moscou e no Cáucaso, e uma sensação generalizada de que o país poderia se desfazer. Putin agiu com rapidez e determinação para restaurar o poder do Estado central. Recentralizou a autoridade sobre as regiões, recuperou o controle das empresas estratégicas, especialmente no setor energético, e reprimiu movimentos separatistas com violência, como no caso da segunda guerra na Tchetchênia. Sua lógica sempre foi a da estabilidade como valor supremo: sem um poder forte, a Rússia não sobrevive como entidade nacional.
Essa centralização encontrou apoio em parte significativa da população, que trocou liberdades políticas por segurança e previsibilidade. O Estado voltou a funcionar, os salários foram pagos, a economia cresceu durante a década de 2000, e o orgulho nacional foi restaurado. O que no Ocidente é visto como autoritarismo, na Rússia é amplamente interpretado como garantia de sobrevivência nacional. Essa leitura se justifica não apenas por uma tradição cultural estatista, mas por lições históricas muito concretas.
Putin também passou a se posicionar como guardião da soberania russa frente ao que vê como ameaças ocidentais à unidade do país. A expansão da OTAN, a influência europeia sobre ex-repúblicas soviéticas e o apoio ocidental a revoluções coloridas (como na Geórgia e na Ucrânia) são lidos por Moscou como tentativas indiretas de enfraquecer e fragmentar a Rússia. Nesse sentido, a política externa agressiva de Putin não é apenas expansionismo, mas também parte de uma lógica defensiva: proteger a periferia para evitar rachaduras no centro.
A história russa mostra que o país raramente encontrou estabilidade sob governos fracos ou democracias descentralizadas. Pelo contrário, os momentos de fraqueza coincidem com rupturas territoriais, intervenções estrangeiras e guerras civis. Isso não significa justificar a repressão ou o autoritarismo, mas entender por que uma ampla parcela da sociedade russa aceita — e até exige — um governo forte. Em um Estado de extensão continental, com fronteiras porosas e múltiplas identidades nacionais, a centralização aparece como ferramenta vital de coesão. Para a Rússia, a força do centro é o cimento da unidade. E, no imaginário nacional, não há espaço para o vácuo de poder: quando ele existe, é rapidamente preenchido pelo caos — e pela perda de território.
Esse artigo faz parte da coletânea de artigos sobre a Rússia
- A identidade em guerra no coração da Ucrânia e da Rússia
- Por que a Rússia precisa de um poder central forte para evitar sua fragmentação
- De aliado ocidental a adversário estratégico: a mudança na postura internacional de Vladimir Putin
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
