
Poucos países possuem uma posição geográfica e histórica tão estratégica quanto a Turquia. Situada entre a Europa e a Ásia, banhada pelo Mediterrâneo, pelo Mar Negro e cortada pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, a Turquia é um elo entre civilizações, religiões, rotas comerciais e zonas de conflito. Essa posição liminar se reflete também em sua política externa: a Turquia contemporânea é, simultaneamente, membro da OTAN, aliada ocasional da Rússia e aspirante à liderança do mundo islâmico. Mas afinal, o que quer a Turquia no sistema internacional?
A resposta começa com a sua ambição: ser uma potência regional autônoma, capaz de agir com independência frente a blocos tradicionais e de exercer influência decisiva sobre os acontecimentos no Oriente Médio, no Cáucaso, nos Bálcãs e no Mediterrâneo Oriental. Para isso, o governo de Recep Tayyip Erdoğan adotou uma estratégia de diplomacia múltipla, na qual alianças são formadas por interesse, não por lealdade ideológica.
Desde 2002, com a chegada do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) ao poder, a política externa turca passou por uma inflexão. O projeto kemalista de ocidentalização foi substituído por uma abordagem que valoriza a identidade islâmica, o passado otomano e a liderança regional. A Turquia passou a investir em sua própria indústria militar, expandir bases no exterior, participar ativamente de conflitos e articular redes diplomáticas e comerciais fora do eixo Europa-EUA.
Um exemplo claro dessa nova postura foi a atuação na guerra civil síria. A Turquia inicialmente apoiou grupos rebeldes contra o regime de Bashar al-Assad, buscando derrubar um governo aliado do Irã. Mas, ao mesmo tempo, interveio militarmente para conter o avanço das forças curdas no norte da Síria, que considera uma ameaça à sua segurança territorial. Em paralelo, manteve canais de negociação com Rússia e Irã no chamado “processo de Astana”, demonstrando flexibilidade estratégica.
No conflito entre Armênia e Azerbaijão, a Turquia apoiou militarmente os azeris, consolidando sua presença no Cáucaso e fortalecendo sua imagem junto a povos turcomanos. Na Líbia, interveio a favor do governo de Trípoli, em oposição aos Emirados Árabes e ao Egito. No Mediterrâneo Oriental, entrou em disputa com Grécia, Chipre e França por zonas econômicas exclusivas e direitos de exploração de gás.
Apesar de ser membro da OTAN, a Turquia comprou sistemas de defesa aérea da Rússia (S-400), provocando tensões com os Estados Unidos e sua exclusão do programa de caças F-35. Ainda assim, continuou participando de operações da aliança e mantendo presença estratégica na região do Mar Negro.
Em relação à Europa, o país vive uma relação de ambivalência. Ainda candidato oficial à adesão à União Europeia, enfrenta críticas por violações de direitos humanos, repressão à imprensa e concentração de poder. Por outro lado, é um parceiro imprescindível para a gestão de fluxos migratórios e para a segurança energética regional, com gasodutos que conectam Ásia e Europa.
No mundo islâmico, a Turquia busca liderar uma nova agenda sunita, em contraposição à influência da Arábia Saudita e do Irã. Usa sua rede de ONGs, universidades e canais de mídia para projetar uma visão de islamismo político moderado, democrático e nacionalista. Essa agenda ganhou força com a Primavera Árabe, mas encontrou limites após o fracasso dos movimentos e a reação autoritária dos regimes árabes.
A Turquia de Erdoğan não é previsível, nem estável. Mas é coerente em sua lógica: maximizar autonomia, explorar brechas entre grandes potências e transformar sua posição geográfica em poder diplomático. Seu modelo não é liberal, nem pró-Ocidente, mas sim um experimento de poder médio que recusa subordinação.
A nova política externa turca é feita de ambivalências, mas essas ambivalências são sua força. Em um mundo em transição, onde alianças são mais fluidas e os interesses nacionais se sobrepõem às ideologias, a Turquia mostra como é possível operar entre blocos, explorar contradições e, sobretudo, afirmar sua presença regional sem pedir licença a ninguém.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
