
Quando Vladimir Putin assumiu a presidência da Rússia no ano 2000, o mundo assistia à consolidação da hegemonia liberal liderada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus. A Guerra Fria havia terminado com a vitória do Ocidente, e Moscou, ainda enfraquecida pelo colapso soviético, procurava se reposicionar no novo cenário internacional. Nos primeiros anos de seu governo, Putin cultivou uma imagem pragmática e cooperativa, estabelecendo uma relação de proximidade com líderes como Bill Clinton, George W. Bush e Tony Blair. Ele falava sobre integração econômica, parceria estratégica e até cogitava uma aproximação com a OTAN. Vinte e cinco anos depois, esse mesmo Putin é descrito como adversário do Ocidente, crítico feroz da ordem internacional liberal e promotor de um modelo de governança autoritário alternativo. O que aconteceu entre o início conciliador e o antagonismo atual?
O Putin do início: pragmatismo e busca por estabilidade
A chegada de Putin ao poder coincidiu com um momento de extrema vulnerabilidade para a Rússia. A economia estava em colapso após a crise financeira de 1998, a guerra na Tchetchênia corroía a legitimidade do governo central, e a influência das oligarquias sobre a política e a economia era quase absoluta. A prioridade de Putin era restabelecer a ordem interna e reconstruir o Estado. Nesse contexto, o Ocidente era visto não como ameaça, mas como parceiro necessário.
Putin estabeleceu relações amistosas com líderes ocidentais. Com Bill Clinton, iniciou conversas sobre cooperação energética e segurança. Com George W. Bush, encontrou pontos de convergência no combate ao terrorismo após os ataques de 11 de setembro de 2001. De fato, a Rússia foi um dos primeiros países a apoiar a invasão americana do Afeganistão, permitindo inclusive o uso do espaço aéreo e bases na Ásia Central. Com Tony Blair, Putin construiu uma relação pessoal sólida; o premier britânico era um dos defensores da integração da Rússia à economia de mercado global.
Havia, naquele momento, expectativas concretas de que a Rússia poderia caminhar para uma forma de “democracia dirigida” alinhada ao Ocidente, com reformas institucionais, crescimento econômico e aproximação com organismos internacionais. Putin chegou a insinuar que a Rússia poderia vir a integrar a OTAN, desde que seus interesses fossem respeitados.
As fraturas emergem: da expansão da OTAN às revoluções coloridas
A virada começa a se consolidar a partir do momento em que Moscou percebe que o Ocidente não via a Rússia como um parceiro igual, mas como um ator subalterno. A expansão contínua da OTAN rumo às fronteiras russas foi interpretada por Putin como uma ameaça à segurança nacional. Países do antigo bloco soviético, como Polônia, Hungria, Romênia e os Estados Bálticos, foram incorporados à aliança militar sem que Moscou tivesse qualquer poder de veto ou mesmo influência sobre o processo. Em 2004, sete países do Leste Europeu entraram de uma só vez na OTAN, aumentando a percepção russa de cerco geopolítico.
As chamadas “revoluções coloridas” que ocorreram em países da ex-URSS — como a Revolução das Rosas na Geórgia (2003), a Revolução Laranja na Ucrânia (2004) e a Revolução das Tulipas no Quirguistão (2005) — foram vistas pelo Kremlin como intervenções indiretas dos EUA para instalar governos pró-Ocidente em áreas historicamente sob influência russa. Putin passou a interpretar essas movimentações como parte de uma estratégia mais ampla para enfraquecer a Rússia e desestabilizar sua esfera de influência.
O novo Putin: restaurador de poder e crítico do Ocidente
A partir de meados da década de 2000, Putin assume uma retórica cada vez mais confrontadora. Em seu famoso discurso na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, criticou abertamente a unipolaridade americana, a militarização da política internacional e a imposição de valores ocidentais a outras nações. A doutrina da “soberania gerida” passou a guiar sua política interna e externa, onde estabilidade, identidade nacional e interesse estratégico se sobrepõem a ideais liberais.
A guerra na Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014, o apoio a Bashar al-Assad na Síria e a invasão da Ucrânia em 2022 consolidam a imagem de um Putin revisionista. Ele passou de líder pragmático para um dirigente que se vê como restaurador do prestígio russo perdido nos anos 1990. Sua crítica ao Ocidente não se limita à geopolítica: atinge também os valores culturais. Putin se apresenta como defensor dos “valores tradicionais” em contraposição ao que chama de “decadência moral” do Ocidente liberal.
O que mudou?
O que mudou, fundamentalmente, não foi apenas Putin, mas o contexto no qual ele atua. A promessa de integração russa em uma ordem global dominada pelo Ocidente se mostrou ilusória. A percepção de que a Rússia seria permanentemente tratada como uma potência de segunda categoria alimentou uma lógica de reação e confronto. A política ocidental, por sua vez, falhou ao ignorar os traumas históricos russos com a fragmentação e ao tratar o país como um derrotado da Guerra Fria, em vez de um parceiro estratégico.
Putin, ao contrário do que muitos analistas ocidentais projetaram no início de sua carreira, não se tornou um liberal “ocidentalizável”. Ele se tornou um líder profundamente moldado pela história do Estado russo, com sua necessidade de centralização, sua desconfiança do Ocidente e sua obsessão com a estabilidade. A evolução de sua política internacional reflete, antes de tudo, a transformação de sua visão de mundo: de um sistema global integrador para um campo de batalha civilizacional.
Putin hoje é a personificação de um Estado russo que, para não se desfazer, acredita que precisa ser forte, centralizador e, cada vez mais, autônomo frente ao Ocidente. Aquele que um dia apertou as mãos de Clinton e Blair em busca de parcerias é o mesmo que agora se apresenta como guardião de uma Rússia que não aceita mais ser conduzida — e que está disposta a confrontar quem tentar fazê-lo.
Esse artigo faz parte da coletânea de artigos sobre a Rússia
- A identidade em guerra no coração da Ucrânia e da Rússia
- Por que a Rússia precisa de um poder central forte para evitar sua fragmentação
- De aliado ocidental a adversário estratégico: a mudança na postura internacional de Vladimir Putin
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
