
No dia 30 de setembro de 2025, em Quantico, Virgínia, o Secretário de Guerra Pete Hegseth dirigiu-se a generais e oficiais de bandeira em um discurso que marcou um divisor de águas na política de segurança dos Estados Unidos. Pela primeira vez desde 1949, quando foi criada a denominação “Departamento de Defesa”, um líder civil de alto escalão declarou de forma enfática que essa era se encerrava. O novo enquadramento institucional, agora sob o nome de “Departamento de Guerra”, reposiciona a função central das Forças Armadas: não mais dissuadir ou prevenir conflitos, mas preparar-se para travá-los e vencê-los. O pronunciamento, permeado por diretrizes concretas sobre padrões físicos, cultura organizacional, regras de engajamento e alianças internacionais, constitui não apenas uma mudança retórica, mas uma verdadeira reengenharia da identidade militar norte-americana.
A seguir apresento uma avaliação do discurso buscando identificar, sobretudo, pontos de inflexão em relação ao que era o posicionamento oficial dos EUA.
Da defesa à guerra: mudança na missão institucional
Historicamente, a missão central do Departamento de Defesa foi “fornecer forças militares para dissuadir guerras e proteger a segurança nacional”. Essa orientação, presente em documentos oficiais como a National Defense Strategy de 2018 e 2022, enfatizava a dissuasão integrada, articulando instrumentos militares, diplomáticos e econômicos.
No discurso do Secretário Pete, essa base é frontalmente redefinida: o “Departamento de Defesa” é substituído pelo “Departamento de Guerra”, e a nova missão é apresentada de forma unívoca: “a única missão é a guerra — preparar-se para travá-la e vencê-la”. Essa formulação elimina a noção de prevenção e desloca o eixo da função militar para o combate ativo, reabilitando uma terminologia abandonada desde o pós-Segunda Guerra.
Cultura institucional e identidade do guerreiro
Outro ponto central é a recodificação da identidade militar. O Secretário insiste que os EUA não precisam de “defensores”, mas de “guerreiros”. Essa escolha semântica produz um efeito organizacional profundo: reforça uma cultura de letalidade, agressividade e prontidão absoluta, ao mesmo tempo em que deslegitima práticas administrativas e culturais associadas à noção de “defesa” — percebida como burocrática, contida ou excessivamente moderada.
Esse movimento é acompanhado por diretrizes concretas: obrigatoriedade de physical training diário, revisão rigorosa de grooming standards, promoção estritamente por mérito e redução de requisitos burocráticos. Tais medidas reforçam a centralidade da disciplina física e da disponibilidade combativa como pilares identitários.
Políticas de pessoal: ruptura com a inclusão e os padrões ajustados
Desde 2015, o DoD havia avançado em políticas de inclusão, como a abertura de todas as funções de combate a mulheres, com ajustes de padrões de treinamento baseados em validade operacional. O discurso atual rompe com essa lógica ao determinar que todos os requisitos retornem ao “padrão masculino mais alto”, aceitando explicitamente a possibilidade de exclusão de mulheres de certas funções.
Essa medida reverte uma década de esforços de adaptação e sinaliza uma guinada cultural: o mérito é redefinido como cumprimento do padrão máximo, mesmo que isso implique reduzir a diversidade na composição das tropas. Trata-se de um reposicionamento que prioriza eficiência combativa sobre abrangência participativa.
Regras de engajamento e letalidade
Outro ponto de inflexão diz respeito às regras de engajamento. Nas últimas duas décadas, especialmente após os conflitos no Iraque e no Afeganistão, o Pentágono desenvolveu um conjunto robusto de normas para mitigar danos a civis e assegurar accountability em operações. Essa política institucionalizada buscava alinhar eficácia operacional a legitimidade internacional.
O Secretário Pete, porém, denuncia “regras de engajamento estúpidas” e promete “desatar as mãos” dos combatentes, enfatizando autoridade no nível tático, agressividade e letalidade. A prioridade deixa de ser a mitigação de danos para ser a maximização da eficácia destrutiva. Essa recalibragem sugere uma reinterpretação do equilíbrio entre liberdade operacional e restrições normativas.
Governança e poder discricionário dos comandantes
No plano interno, há uma clara redução do espaço para mecanismos de controle e denúncia. O fim de queixas anônimas, a limitação de “reclamantes repetidos” e a redefinição de “liderança tóxica” em favor da imposição de padrões são medidas que enfraquecem instrumentos de oversight (como IG, EO e MEO) e transferem maior poder discricionário para comandantes e suboficiais. Essa mudança pode aumentar a coesão de curto prazo, mas reduz contrapesos institucionais que atuavam como salvaguardas contra abusos.
Relações externas e alianças
Embora mantenha a linha de exigir maior participação dos aliados — algo presente em administrações anteriores —, o discurso adota um tom mais duro e transacional. “A América não pode fazer tudo”, afirma o Secretário, cobrando dos parceiros o cumprimento de obrigações em termos de hard power. Se a retórica de 2018 e 2022 falava em “dissuasão integrada” e coordenação, a nova orientação soa como imposição: a carga deve ser compartilhada sob pena de sobrecarga americana.
Implicações estratégicas
O conjunto dessas mudanças aponta para uma rearquitetura estratégica dos EUA:
- Doutrina: substituição da dissuasão integrada pela centralidade da guerra e vitória como propósito institucional.
- Cultura organizacional: reforço da identidade guerreira, da letalidade e da prontidão física.
- Gestão de pessoal: redefinição de mérito segundo padrões máximos, com impacto direto sobre a inclusão.
- Operações militares: flexibilização das regras de engajamento, ampliando a liberdade para a violência letal.
- Governança interna: redução de canais de accountability e aumento da autoridade discricionária dos comandantes.
- Relações externas: endurecimento da linguagem de burden-sharing, priorizando capacidades concretas sobre arranjos diplomáticos.
Conclusão
O discurso do Secretário Pete inaugura um ciclo de transformação que não pode ser interpretado como mero ajuste retórico. Ao reativar o conceito de “Departamento de Guerra” e ao recolocar a vitória em combate como finalidade última, o governo sinaliza uma ruptura histórica com o paradigma que estruturou o sistema de defesa norte-americano desde 1949. Essa guinada não apenas reposiciona os EUA no cenário internacional, mas também reformula a própria lógica de funcionamento de suas forças armadas, privilegiando a agressividade, a letalidade e a cultura guerreira em detrimento da prevenção, da mitigação e da diversidade.
Acesse o discurso completo (em inglês) em:
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
