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Autoritarismo de Farda: quando a guerra vira identidade nacional

Nos últimos anos, multiplicaram-se sinais de que os Estados Unidos atravessam uma guinada preocupante em sua relação com as forças armadas e com o próprio papel da violência de Estado. Já não se trata apenas de ajustes estratégicos ou de debates técnicos sobre orçamento militar. O que está em jogo é a tentativa de transformar a guerra na identidade central da nação, substituindo o equilíbrio entre defesa, diplomacia e política interna por uma lógica de mobilização permanente.

Esse processo segue um roteiro conhecido. Primeiro, redefine-se o inimigo de forma cada vez mais vaga, até que não reste apenas o adversário externo: a ameaça passa a incluir também opositores internos, críticos, jornalistas, movimentos sociais. Em seguida, promove-se a ideia de que todo questionamento é sinal de fraqueza e que a única forma de garantir segurança é pela obediência e pela força. O militarismo, assim, deixa de ser uma ferramenta para se tornar um fim em si mesmo — e, nesse caminho, acaba corroendo a própria democracia que dizia proteger.

O discurso do Secretário de Guerra Pete Hegseth, em setembro de 2025, é um exemplo eloquente dessa tendência. Ao anunciar a morte do “Departamento de Defesa” e proclamar a criação do “Departamento de Guerra”, ele não apenas trocou uma placa na porta do Pentágono. Ele cristalizou a ideia de que a única missão dos EUA é a guerra: não defesa, não diplomacia, não missões humanitárias. Guerra. Essa afirmação retira a máscara de contenção que, ao menos simbolicamente, sempre acompanhou o nome “defesa”, e coloca no centro a violência como linguagem política.

O problema não está apenas nas palavras, mas na maneira como elas se articulam a um projeto mais amplo de poder. Quando um governo fala em tratar cidades como “campos de treinamento”, o que se insinua é a disposição de converter o espaço doméstico em território militarizado, onde cidadãos deixam de ser protegidos para se tornarem potenciais alvos. Isso já não é defesa nacional; é o ensaio de uma ocupação interna.

Há também uma dimensão de manipulação histórica. Ao evocar Roma no século IV ou frases de George Washington, o Secretário escolhe elementos convenientes para justificar a exaltação da força, mas omite as advertências contra os riscos do militarismo constante e dos enredamentos externos. Trata-se de uma leitura seletiva do passado para legitimar um futuro de mobilização permanente, onde a guerra não é exceção, mas regra.

Esse processo tem consequências políticas diretas. Ao centralizar poder nos comandantes, enfraquecer mecanismos de denúncia e zombar da diversidade e da regulação, o governo reduz os freios institucionais que garantem limites ao uso da força. A mensagem é clara: disciplina e obediência são valores supremos; contestação e pluralidade, ameaças. O risco evidente é que a máquina militar seja reconfigurada não para defender a Constituição, mas para servir a um projeto de nacionalismo autocrático.

A história do século XX oferece paralelos incômodos. Em diferentes regimes, a transformação do exército em instrumento de poder pessoal foi precedida exatamente por esse processo: redefinição do inimigo, mobilização permanente, uso da tropa para controlar a sociedade. O resultado foi invariavelmente o mesmo — a erosão da democracia e o avanço de formas explícitas de autoritarismo.

O discurso de Hegseth deve, portanto, ser lido não como um ato isolado, mas como sintoma de algo maior. É a expressão concreta de uma lógica que já vinha sendo gestada: a de que patriotismo equivale a militarização e que questionar essa equação é se colocar do lado dos inimigos. Nesse cenário, a bandeira que se ergue não cobre mais a pluralidade de uma democracia, mas serve de manto para um projeto de poder que confunde segurança com submissão.

Se aceitarmos essa lógica, estaremos a um passo de naturalizar a guerra como destino inevitável. E quando a guerra vira identidade nacional, o risco não é apenas para os adversários externos, mas para a própria cidadania, que deixa de ser sujeito de direitos para se tornar objeto de controle.

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