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Myanmar “revisitado”

A coluna do correspondente em Paris do Estadão, Gilles Lapouge, levanta uma questão pungente, e praticamente ignorada pela opinião pública internacional: o destino dos Rohingyas, em Myanmar, e o silêncio da “Prêmio Nobel da Paz”, Aung San Suu Kyi, a respeito da tragédia deles.

Primeiramente, quem são os Rohingyas?

Há várias interpretações sobre o momento em que sua presença passou a ser registrada na ex-Birmânia. A maioria dos analistas acredita que eles não são mais do que mais um “subproduto” nefasto do colonialismo inglês: teriam sido levados no final do século XIX e início do XX do vizinho – e muçulmano – Bangladesh, como “coolies”, para realizar trabalhos braçais semiescravos para os colonizadores. Teriam, portanto, chegado ao solo birmanês após 1824, quando a Coroa Britânica, após vencer a primeira “Guerra Anglo-Birmanesa” (1824/26) , assumiu de vez a tutela da região e a incorporou ao seu império (outros pensam que a presença muçulmana se remete ao século XII, pelos mercadores árabes que percorriam a “Rota da Seda”).

Se assim fo(sse)r, ou seja, se chegaram após 1824, de acordo com a “Lei da Cidadania” promulgada em 1982 pelos militares, eles não teriam direito à cidadania. Ou como diz o texto legal:

“Nationals such as the Kachin, Kayah, Karen, Chin, Burman, Mon, Rakhine or Shan and ethnic groups as have settled in any of the territories included within the State as their permanent home from a period anterior to 1185 B.E., 1823 A.D. are Burma citizens.

Por cima, a legislação tampouco reconhece os rohingyas como um dos 135 subgrupos étnicos nacionais. Por esta combinação de fatores, ela lhes nega qualquer direito à cidadania, tornando-os apátridas. Tanto é assim que eles somente possuem passaporte da ONU. E são extremamente pobres…

Situação atroz, que faz com que a violência com que são tratados pela imensa maioria budista do país (89% da população) os expulse a cada vez que ocorre um confronto mais violento entre ambos. Mais de 500 mil deles já buscaram refúgio nos países vizinhos, sobretudo em Bangladesh e Malásia, irmãos de fé. E ali vão multiplicar os campos de refugiados, ou serem deportados, como hóspedes indesejáveis…

O último confronto, que mobilizou a opinião pública internacional, ocorreu no dia 25 de agosto passado, quando uma milícia do “Exército de Salvação Rohingya de Arakan”/”Arakan Rohingya Salvation Army”/ARSA invadiu trinta postos policiais e reanimou a ira da população budista, que reagiu de forma atroz. Muitos foram os mortos, entre eles mulheres e crianças, e mais ainda – calcula-se em 300 mil – os que buscaram refúgio nos campos da Agência da ONU para Refugiados/ACNUR, em Bangladesh.

E aí está o “X” da questão:

Os myanmarenses acusam o ARSA de ser um grupo terrorista islâmico apadrinhado pelos talibãs (que, de sua parte, negam a afiliação). E o pavor de que a radicalização fundamentalista esteja transbordando para Myanmar acirra os ânimos da população, que o clero budista incita…

E onde entra Aung San Suu Kyi nesta história?

Pela sua luta inarredável em favor da democracia na Birmânia (como ela insiste em chamar o seu país), a comunidade internacional esperava que ela tomasse partido a favor dos oprimidos. Porém, sua resposta foi…o silêncio. Criticas choveram em cima dela, a ponto de Su Kyi desistir de participar da Assembléia Geral da ONU, que ocorre neste momento.

Gilles Lapouge qualifica seu silêncio de “desconcertante”. E tece considerações sobre as suas possíveis razões.

Tive o privilégio de servir tanto em Bangladesh quanto em Myanmar, neste último país mais recentemente. E de conhecê-la pessoalmente: um grande momento para mim. A experiência “in loco” nos faz analisar as situações de um olhar menos contaminado pelas “verdades ocidentais”, ainda que sob pena de parecermos, no mínimo, insensíveis. Mas analisemos: filha do prócer da independência da Birmânia, Su Kyi lutou toda a sua vida pela redemocratização da sua terra natal. Enfrentou a fúria dos ditadores militares, que a encarceraram em sua residência por 21 anos; e foi a população budista, liderada pelos monges, que a apoiou incansavelmente ao longo de todo o processo, muitas vezes às custas da morte dos militantes, e levou o partido que ela fundou, a “National League for Democracy”, a vencer as eleições presidenciais dois anos atrás e a chegar ao poder (ainda que lhe tenha sido negada a Presidência do país, por artimanhas constitucionais arquitetadas pelos militares).

O jogo democrático é ainda um infante ameaçado por eles e por seus comparsas empresariais, e não se sustenta ainda pelas suas próprias pernas. Caso haja uma cisão na população entre os que são a favor de uma postura pró-rohingya (será que existe alguém lá?…) e a imensa maioria que os rechaça por xenofobia travestida de temor ao fundamentalismo, a margem de manobra da Grande Líder se reduz a praticamente zero.

Ou seja, seu dilema fica entre a consciência humanitária (que seguramente tem) e a prioridade absoluta de solidificar o processo democrático. Dilema atroz! Por isto, ela não acusa, mas tampouco defende… Ou seja, nem tudo é negro e nem tudo é branco no que toca à postura da Grande Dama… Os matizes de cinza parecem ser os mais realistas ao julgarmos Aung San Suu Kyi.

Cínico? Desumano? Ou sensato?….

Para a reflexão dos amigos. Aconselho a leitura do artigo:


Silêncio desconcertanteAung Suu Kyi, vencedora do Nobel da Paz, se cala diante do massacre em MianmarGilles Lapouge , O Estado de S.Paulo – 15 Setembro 2017 | 05h00

O mundo inteiro, incrédulo, horrorizado, observa o massacre da população muçulmana rohingya em Mianmar por soldados dos generais budistas que governam o país. Quatrocentas mil pessoas pertencentes a essa minoria muçulmana, incluindo mulheres e bebês, vêm sendo caçadas como animais e tentam se refugiar no vizinho Bangladesh, país extremamente pobre e sem capacidade para acolher essa gente. Um dos maiores dramas neste mundo de hoje repleto de dramas.

Êxodos, massacres, genocídios, infelizmente estamos habituados a esse tipo de espetáculo. Mas o que vem ocorrendo em Mianmar tem uma conotação estranha. O governo é dominado por generais de uma brutalidade extrema, mas dele participa também uma personalidade fora do comum, Aung Suu Kyi, considerada uma heroína.

Aung é uma antiga e feroz opositora da junta que há 50 anos governa Mianmar com mão de ferro. Perseguida, isolada, jogada em campos e prisões durante mais de dez nos, ela jamais se dobrou a seus algozes. Em 1991, recebeu o Nobel da Paz. Foi finalmente libertada em 2010 e, mais tarde, eleita deputada. Em 2016, assumiu o cargo de chanceler, conselheira especial de Estado e porta-voz do governo.

No entanto, os generais não desapareceram, conservando postos estratégicos como os da Defesa, controle das fronteiras e da segurança pública. O país é dirigido de um lado por uma ditadura militar e, do outro, por uma mulher que, para o mundo externo, é uma garantia da democracia e dos direitos humanos.

Ora, o que faz e diz esta mulher sobre a perseguição dessa minoria muçulmana pelos soldados budistas? Vai se indignar com o fato de jovens e mulheres serem deportados em massa? Ou com helicópteros sobrevoando cidades atirando com metralhadoras, com pessoas sendo encerradas em suas casas e queimadas, ou com uma mulher que acaba de dar à luz vendo seu filho pisoteado pelos soldados? Silêncio.

Todo mundo procura entender sua apatia. É bom lembrar que ela foi eleita deputada pelos budistas, que não compreenderiam que ela fosse em socorro dos rohingyas. Ela, talvez, tenha medo de ver sua base eleitoral vacilar. Ou teme exacerbar e multiplicar o furor dos generais e, com isso, sua crueldade.

A indignação dos países estrangeiros é quase unânime, com exceção da China. Mas Aung Suu Kyi está ausente. O silêncio dessa mulher corajosa é tão surpreendente que as explicações acima parecem um pouco breves, insuficientes.

Algumas pessoas observam que essa sórdida limpeza étnica foi desencadeada por um atentado que ocorreu em 25 de agosto, levado a cabo por rebeldes muçulmanos da minoria rohingya. Esse ataque a delegacias é que agravou a situação. Ou, de acordo com algumas fontes, o ataque teria sido realizado por rohingyas, mas por iniciativa e com apoio da Al-Qaeda, organização terrorista que, impulsionada por Bin Laden, cometeu atrocidades no mundo, não hesitando mesmo em atacar os Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, com a destruição das Torres Gêmeas de Nova York.

Se essas informações forem exatas, então a perseguição aos rohingyas é criminosa, claro, mas muda de caráter. Em vez de ser um assunto interno de Mianmar, país no qual 90% de seus habitantes são budistas, seria um novo episódio terrível da guerra travada pelo mundo contra os fanáticos da jihad. Até agora, não há nenhuma prova disso. No entanto, vale a pena notar que a Al-Qaeda denunciou a operação lançada pelos generais birmaneses. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*É CORRESPONDENTE EM PARIS

Publicado originalmente em http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,silencio-desconcertante,70001997866

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.