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As eleições na Índia… certezas e controvérsias

Terminaram, finalmente, as intermináveis eleições na Índia para constituir o 17ª “Lok Sabha”, a Câmara Baixa, equivalente à nossa Câmara dos Deputados. A votação durou um mês e oito dias – de 11 de abril a 19 de maio – repartida em sete “fases”, correspondentes aos escrutínios nas diferentes regiões do país. Dos nove milhões de eleitores, 67% deles compareceram às urnas, o maior percentual na história da Índia, inclusive no que se refere à participação das mulheres.

Do total de 543 assentos do certame, 353 serão ocupados pela aliança da direita liderada pelo “Bharatiya Janata Party”/BJP, do Primeiro-Ministro Narendra Modi. Em segundo lugar veio a aliança opositora – “União da Aliança Progressista/United Progressive Alliance”- comandada por Rahul Gandhi, herdeiro da dinastia Nehru/Gandhi e Presidente do Partido do Congresso, o qual fez a história da Índia independente e liderou até 2014 a vida política do país.

Com esta vitória significativa, Modi e seus aliados vêem ampliado seu poder para dirigir os destinos da Índia por mais cinco anos. Um amálgama de nacionalismo hindu com uma boa dose de populismo e programas sociais, devidamente alardeados, alavancaram esta vitória e imprimem as suas digitais no projeto, condicionando a atuação da coligação vencedora ao seu perfil; aliás, como já tem acontecido, de certa forma, desde 2014, no primeiro governo Modi. Rahul Gandhi, agora aliado à sua irmã, Pryianka, comandará a resistência aos arroubos nacionalistas do “establishment”, que têm raíz na doutrina radicalizante do(a) Hindutva, desenvolvido(a) durante as lutas pela independência do Raj Britânico, e popularizado(a) no início dos anos 20 pelo político e ativista, Vinayak Damodar Savartar.

Este cenário pode ser descrito nas palavras de um líder muçulmano, Abdul Khaliq, Secretário-Geral do partido “Lok Janshakti Party”… “I fear for our future as a secular, multicultural country that once celebrated a richness of culture and tradition. Till not long ago we affirmed our common humanity even as we celebrated our differences. Our nation represented diversity, kindness, compassion and a revulsion of extremist views. But, over time, our collective souls have been deadened by violence, deepening communal and caste divides and the most perverse thinking. The cosmopolitan spirit has been throttled by hyper nationalism, populism and a deep distrust. The cosmopolitan spirit has been throttled by hyper nationalism, populism and a deep distrust of the liberal values of tolerance and inclusion. A creeping majoritarianism is spreading across the land”…

Por quê?

O(a) Hindutva tem sido qualificado(a), na sua essência, como um movimento hinduísta exacerbado, que prega o predomínio de uma sociedade hindu homogênea ou, segundo alguns analistas, de um “absolutismo étnico” apoiado no fato de que, sendo a imensa maioria da população indiana hindu (79,8% segundo o censo de 2011), contra 14,2% de muçulmanos (que constituem, por sua vez, a terceira maior população islâmica do planeta), 2,3% de cristãos e de demais minorias étnico-religiosas – sikhs, budistas, jainistas, parsis, judeus, entre outras – incumbe a ela definir os destinos do país.

Este conceito vai em contra a própria Constituição, que, no seu preâmbulo estabelece que a República da Índia é um Estado laico, no qual é assegurada “ LIBERTY of thought, expression, belief, faith and worship” (tal como literalmente ali descrita, em inglês).Entretanto, algumas ocorrências nefastas recentes têm alimentado as preocupações dos que vêm no acirramento da confrontação hinduísmo X islã– a exemplo do que ocorreu recentemente num vilarejo do país, onde operários muçulmanos que estavam se desfazendo da carcaça de uma vaca foram linchados por uma turba enraivecida – um risco para o próprio futuro da “maior democracia do planeta”, como se referem os indianos ao seu país. Permanece, com efeito, vívida na memória da sociedade o período turbulento da Partição, quando as atrocidades cometidas entre muçulmanos e hindus deixaram cicatrizes até hoje expostas: a Caxemira que o diga…

Na contraleitura, a Índia vem apresentando um notável desenvolvimento econômico desde que Modi assumiu o poder, em 2014. Seu PIB revela aumento de mais de 6% ao ano nesta última década; em 2017, foi a economia que mais cresceu em todo o mundo. No ano passado ela ficou em quarto lugar – suplantada apenas pela Etiópia, Ruanda e Bangladesh (!!!…) – com surpreendentes 7,1% com relação a 2017. Grande parte da sua população tem sido resgatada da miséria, e hoje a classe média é constituída por mais de 350 milhões de indivíduos, ou seja, um Brasil e meio, quase… O governo indiano alardeia que “… according to several studies, India’s growth rate should stabilise at 8% during the next decades, ranking the country as the world’s fastest-growing economy. Its GDP could overtake that of the US before 2050, turning India into the strongest economy worldwide…” E a população aprova entusiasticamente o desempenho do governo, como, de fato, comprovou o resultado das eleições.

Sintomas de um novo tempo e dilemas propostos a uma civilização multimilenar exposta ao progresso globalizante em meio a um atavismo civilizacional de raízes muito profundas?… Complexo, como tudo na Índia, né?…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.