Desde que arrebatou o poder na China, em 1949, o Partido Comunista Chinês assumiu o protagonismo no estabelecimento dos fundamentos do comunismo “a la chinesa” e definiu monocraticamente as estratégias de desenvolvimento e reformas através de metas. Paulatinamente, elas modificaram o perfil da República Popular que, de uma economia maoísta centralizada até 1976, encaminhou-se para a “economia socialista de mercado”, que Deng Xiaoping “neologicamente” cunhou para qualificar o processo de reformas e abertura deslanchado a partir de 1979 na busca de romper o isolamento multissecular do país e inseri-lo no mundo do último quartel do século XX.
Cabe lembrar que neste processo, já a partir de 1953 passaram a ser adotados os chamados “Planos Quinquenais” ( 五年计划 ) para orientar a política econômico-social do país. Naquele primeiro momento, o objetivo era sedimentar os fundamentos marxistas-leninistas, através de paradigmas de crescimento e de reformas que seguiam o modelo soviético. Eles se fundamentaram, basicamente, 1) na propriedade estatal dos setores mais modernos da economia, sobretudo a indústria; 2) na coletivização das grandes unidades agrícolas; e 3) no planejamento econômico centralizado. O grande sonho de Mao – e o pesadelo que gerou – era sua obsessão em transformar um país milenarmente agrário numa potência industrial numa velocidade inconcebível naquele momento, tornando o “Grande Timoneiro” em responsável por uma das maiores tragédias que o país viveu no século passado: a fome que vitimou entre 15 e 55 milhões de indivíduos…jamais se saberá, ao certo, quantos foram….
Desde o início, institucionalmente as políticas adotadas pelo governo têm que ser referendadas pelo Congresso Nacional do Povo, que é o órgão legislativo maior e congrega cerca de três mil membros (eram 2.980, em 2018), tornando-o no maior corpo legislativo do planeta. No intervalo de suas reuniões bianuais, o Comitê Central – o eleito em 2012, tem 205 membros e 171 suplentes – desempenha as tarefas legislativas, comandado, em sua máxima instância pelos 25 lideres que compõem o seu Birô Político. No topo desta escada hierárquica de vários degraus encontram-se o Secretário-Geral do PCC e o Presidente da República, cargos costumeiramente compartilhados pela mesma autoridade, por ora ( e sabe-se lá até quando…), Xi Jinping. Atualmente, o Politburo age como o – “de facto” – mais poderoso órgão de decisão da China. A atuação de seus membros é acompanhada de perto pela mídia nacional e internacional, bem como por governos e políticos do mundo inteiro.
No ápice deste cenário paira o sonho de Xi de transformar a China na maior potência econômica do planeta até o final deste século: como enuncia o professor da Academia Nacional de Defesa, Liu Mingfu no primeiro parágrafo do capítulo I, do seu livro “The China Dream” – que Xi tem como livro de cabeceira e cita em cada discurso – ”… what does it mean for China to become the world´s leading nation? It means that China´s economy will lead the world…”
Esta premissa está embutida, grosso modo, no 14º Plano Quinquenal, que o Comitê Central do PCC analisou nesta semana, definindo o roteiro da República Popular para o quinquênio de 2021 a 2025, já voltado, porém, para a China de 2050. Como se sabe, o Plano ”Made in China 2025”, anunciado em maio de 2015, indica o caminho até 2050, quando a RPC ambiciona tornar-se uma nação totalmente moderna, particularmente nas áreas de ciência e tecnologia e de defesa. Segundo os analistas, esteve em discussão também neste simpósio uma estratégia econômica de médio prazo, a chamada “visão de 2035”.
Isto complementa o que Xi declarou no 19º Congresso Nacional do CPC no final de 2017: “a China “basicamente” realizará a modernização socialista até 2035”. Foram, aliás, estes os termos que ele utilizou no seu discurso perante o Congresso Nacional do Povo por ocasião das celebrações do 70º aniversário da fundação da República Popular da China, em outubro do ano passado, quando declarou “vitória sobre muitos problemas difíceis e antigos” e defendeu a continuidade da abertura para as empresas estrangeiras, o aprofundamento das reformas das empresas estatais, o fortalecimento da regulamentação do setor financeiro e uma melhor coordenação das políticas fiscal e monetária.
Grandiloquência à parte, qual é o sonho de Xi? Transformar a China numa “sociedade moderadamente próspera”, com um crescimento anual do PIB de 5%; não mais os 10 e 11% de anos anteriores. Tampouco uma meta definida: agora, estimativa apenas, em vista igualmente do cenário externo; do desenrolar da pandemia da Covid-19 e seus reflexos planetários, econômicos inclusive; da hostilidade na disputa comercial-tecnológica com os Estados Unidos, que os analistas preveem não se modificará independentemente de quem vença as eleições americanas. Contribuem também para este cenário mais sóbrio a “desglobalização” da economia e o encolhimento do comércio internacional num ambiente mundial volátil, de modo que a demanda por bens chineses é menor, e a sensibilidade (aversão?) à ascensão da China é mais evidente. Prepara-se, aparentemente, o país tanto para desafios econômicos internos quanto hostilidades crescentes no exterior.
Este plenário marcou também um ponto de inflexão em um dos objetivos centenários da China: tornar-se uma sociedade moderadamente próspera, objetivo aparentemente alcançado neste ano, atestado pela propalada erradicação da pobreza extrema; a se provar, um feito notável levando-se em conta o tamanho da população. Neste contexto, o foco do próximo quinquênio será uma estratégia que o presidente chinês chamou de “Double Development Dynamics”; ou seja, um movimento dualista, reequilibrando-se em direção ao mercado interno, ampliado nestes últimos anos, para “facilitar uma melhor conectividade entre os mercados interno e externo, com foco para o crescimento mais resiliente e sustentável”, segundo os planificadores. Essencial para Pequim é o padrão de qualidade que deve guiar a busca da autossuficiência em ciência e tecnologia, com crescente independência nos setores de alta tecnologia, especialmente design e fabricação de chips semicondutores, que subjugam todos os setores de ponta – a inteligência artificial (IA), a tecnologia 5G, supercomputação, computação quântica, e até mesmo smartphones. Assim como as outras tecnologias a serem perseguidas no próximo quinquênio: fontes renováveis de energia, ciência dos materiais, novos veículos, biotecnologia e ciência espacial, todas elas parte da estratégia “Made in China 2025”.
Frente às múltiplas e controvertidas realidades que abundam no planeta contemporâneo, cabe indagar se o “China Dream” de Xi Jinping tem chance de se tornar realidade. Muitos fatores condicionam sua concretude; o mais relevante, a meu juízo, é a cada vez mais evidente transferência do eixo da geopolítica/geoeconomia para a região da Ásia do Pacífico. Isto é fato. Diante disto, estaria a República Popular, “newcomer” neste universo, preparada para assumir uma hegemonia que ela na verdade não entende, pois seus conceitos políticos e civilizacionais não se encaixam, por ora, no “Ocidente” central?
Gigante geoeconômico e anão geopolítico? Fica a dúvida…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria abaixo do Estadão:
A China se apruma – Opinião – Estadão
Plano quinquenal do Partido Comunista Chinês não traz surpresas: nos próximos anos país fortalecerá autocracia, continuará ascensão como potência econômica e investirá em tecnologia