ISSN 2674-8053

Clash of Civilizations: os EUA, a RPC, a campanha “Stop Asian hate” e o tal do Jacaré…

Protestantes na manifestação nacional Stop Asian Hate, em 27/03/2021 (Foto de Axel Koester)

No último dia 17/03, um homem branco entrou em uma área de casas de massagem em Atlanta, nos Estados Unidos, e matou oito pessoas, seis delas mulheres descendentes de chineses e coreanos. No Reino Unido, no começo de março, um professor chinês de 37 anos foi espancado por quatro homens brancos que o xingaram de “vírus chinês”.

O aumento do preconceito e do ódio contra a comunidade asiática pode ser atribuído à disseminação de “fake news” que circulam desde o começo da pandemia, atribuindo aos asiáticos a proliferação do vírus, identificando-os como os únicos responsáveis pela doença, que, como sabemos, originou em Wuhan, na China. Para combater o espraiamento do preconceito nos EUA, um grupo de americanos lançou a campanha “Stop Asian Hate”/ Stop APPI Hate que vem ganhando força nas redes sociais dos Estados Unidos. As manifestações do grupo continuam ocorrendo em diversas localidades estadunidenses: Nova York, Oxford, Los Angeles, San Francisco e Chicago foram algumas das cidades que foram palco desses protestos.

Nas últimas semanas, artistas como os atores da série “Killing Eve”, Sandra Oh, e do seriado “Lost”, Daniel Dae Kim, têm sido algumas das vozes mais ativas a cobrar a Justiça dos Estados Unidos por atitudes enérgicas contra esta onda de preconceito. Recentemente, Daniel Kim, que é de origem coreana, discursou para legisladores no Subcomitê Judiciário da Câmara dos Representantes do Congresso americano no sentido de que se aprovasse um projeto de lei de combate ao ódio contra asiáticos. Kim não escondeu sua frustração após 164 membros republicanos do Congresso Nacional terem votado contra o projeto.

De acordo com a “Stop APPI Hate”, que é responsável por identificar e registrar as agressões, 3.795 incidentes racistas contra asiáticos foram relatados entre março do ano passado e fevereiro deste ano. Desde o início da pandemia, esses ataques aumentaram em quase 150%, segundo estudo desenvolvido pelo “Center for the Study of Hate and Extremism”, da Universidade da Califórnia. Esta escalada está alimentado reações da comunidade asiática que passou a organizar patrulhas de bairro em Queens, Nova York, onde seus mais de 200 membros se revezam no relato de atividades suspeitas à polícia. Uma dúzia deles recentemente solicitou licenças de porte de armas de fogo.

Universidades como Harvard e Columbia University prestaram solidariedade ao movimento, que ganhou forte apoio da comunidade estudantil. O reitor da Columbia University, Lee C. Bollinger, postou a seguinte mensagem: “aos milhares em nossa comunidade da Columbia que são asiáticos ou asiático-americanos, queremos que saibam que nós, também, em seu nome e por todos nós, sentimos a angústia e o medo justificável por causa deste último episódio de uma tensão profundamente enraizada de racismo na América. A verdade é que não pode haver equanimidade para nenhum de nós enquanto a violência nascida da intolerância e da xenofobia estiver presente em nossas vidas”.

Outras importantes universidades sediaram atos em prol da campanha e cobram maior apoio das autoridades do setor de ensino, entre os quais melhorias nos sistemas de segurança e educacional, através de ações que recapitulem a saga histórica do povo asiático e das suas comunidades estabelecidas tanto no solo americano quanto nas ilhas do Pacífico, inclusive no que respeita à amplificação da sua representatividade em diversos setores da sociedade americana.

A ONU juntou-se a estas iniciativas e manifestou igualmente o seu repúdio através de um comunicado do Secretário-Geral, António Gueterres, no dia 22/03, no qual afirma estar “profundamente preocupado (“profoundly concerned”) com o aumento da violência contra asiáticos e pessoas de ascendência asiática durante a pandemia COVID-19…este momento de desafio para todos deve ser um momento para se defender a dignidade de todos”.

Estes são os fatos. Vamos, agora, buscar analisar as circunstâncias…

Os defensores da causa afirmam que a violência pode estar ligada ao acirramento do sentimento anti-asiático nos EUA, que atribuem à retórica anti-China do ex-presidente Donald Trump, que muitas vezes fez menção à pandemia como o “vírus da China” ou a “gripe kung”. No entanto, estes incidentes são melhor explicados pela “omissão generalizada” da comunidade no contexto multicultural americano, segundo a ativista e fundadora da ONG “Rise Civil Rights”, Amanda Nguyen. Para ela, “… embora a população asiática tenha crescido mais rápido do que outros grandes grupos, conforme o último censo dos EUA, suas histórias não são amplamente cobertas pela mídia e suas preocupações não são encampadas pelos partidos políticos”. E acrescenta… “We have been systematically erased on every single level and people can start to combat that by educating themselves about us.”

Na verdade, o “buraco é mais embaixo”, e mais antigo…Recorramos à História:

Esta não é a primeira vez que o fundamento da raça é usado como cobertura para marginalizar ou agir contra os asiáticos nos EUA. O preconceito data já da época da chamada “Corrida do Ouro” – a “California Gold Rush” – à região da Califórnia, em meados do século XIX. O sonho do “Eldorado” californiano animou os chineses que viviam momentos conturbados no Império Qing a emigrarem para a região. Os primeiros chegaram em 1848, em São Francisco. Em torno do final dos anos 1850s eles já constituíam um quinto da população do território. O estranhamento cultural alimentou os nativistas brancos a espalharem propaganda sobre os hábitos impuros dos imigrantes. A partir de então eles passaram a constituir o “perigo amarelo”, impróprio para a cidadania na América.

Este estado de ânimos alimentou a aprovação da “Lei de Exclusão Chinesa”, assinada pelo presidente Chester A. Arthur, em 6 de maio de 1882, que proibia toda a imigração de trabalhadores chineses. Esta lei, assim como uma anterior, de 1875, que vedava as mulheres chinesas de imigrarem para os Estados Unidos, foram as primeiras, e continuam a ser as únicas legislações implementadas para impedir que membros de um grupo étnico ou nacional específico imigrassem para os Estados Unidos. A legislação foi inicialmente destinada para durar 10 anos, mas foi renovada em 1892 e tornou-se permanente em 1902, até cair em desuso.

O preconceito étnico tomou nova forma na II Guerra Mundial, após o ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941. Os asiático-americanos foram internados em massa nos EUA, em nome da segurança nacional. Os que mais sofreram foram os 120.000 californianos de ascendência japonesa, dois terços dos quais haviam na verdade nascido no solo americano e, portanto, eram cidadãos estadunidenses. A maioria foi encarcerada em “campos de realocação” remotos por mais de dois anos, apesar de nunca ter sido condenada — ou mesmo formalmente acusada – de qualquer crime. Aliás, a bem da verdade, cabe lembrar que o mesmo ocorreu no Brasil, como o escritor Fernando de Morais magistralmente conta no seu livro “Corações Sujos”.

A brasa do preconceito permanece sempre acesa, não somente contra os asiáticos, é claro, e suas fagulhas estão prontas para se espalharem por todos os cantos do planeta: os imigrantes e refugiados de toda sorte são um dos alvos tenebrosos. E não respeitam fronteiras, sejam elas físicas, religiosas, étnicas, etc.,muitas vezes numa mistura explosiva, literalmente.

Também nós, nos confins da América, vivemos momentos similares. Surge, então, a pergunta que não quer se calar: a Coronavac, chinesa, nos transmutará, finalmente, em jacarés????…

E assim, la nave va…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.