Tratei no artigo “A Índia em comoção” do conflito que as três leis promulgadas pelo governo indiano em setembro do ano passado regulamentando o processo de comercialização de cereais vêm deflagrando junto à comunidade agrícola da Índia, sobretudo na região do Punjab.
Conforme salientei, elas modificam o processo tradicional de comercialização de cereais que era feito através de um conselho criado pelos governos estaduais, os quais teoricamente garantiam proteção aos agricultores da exploração pelos varejistas. A lei que regulamentava este sistema – “Essential Commodities Act, 1955” – data de 1955. Por ela, cabia aos estados-membros regulamentar a comercialização das safras em leilões determinados pelos “Comitês de Mercado de Produção Agrícola”, em locais especificamente designados, os chamados “mandis”. Era, desta forma, assegurado aos agricultores um preço mínimo para seus produtos, definidos por esses comitês. Havia, entretanto, restrições sobre quem poderia atuar nestes leilões, o que levantava suspeitas de intervenções ilegítimas no processo.
O governo central julga que as grandes empresas do agronegócio agiam em conluio com as autoridades estaduais para definir o preço das mercadorias, o que afetava a produção, o fornecimento e a distribuição de certos produtos-chave. O novo conjunto de leis visa, desta forma, restringir esses poderes, principalmente no que respeita à alienação desvantajosa pelos lavradores das colheitas futuras. A partir desta nova legislação, eles podem comercializar seus produtos com qualquer um, e a qualquer preço.
Entretanto, o que poderia parecer uma boa decisão gerou imensa polvorosa, sobretudo entre os produtores da região do Punjab, considerada o celeiro da Índia. Recordemos que foi ali que ocorreu a chamada “Revolução Verde”, em 1965, que tornou o país autossuficiente em alimentos, o que não é pouco a se levar em conta a enorme população da Índia. O país depende do Punjab para se alimentar! E os agricultores alegam que as novas regras os deixarão expostos à voracidade das empresas que os exploram, sem o amparo dos governos estaduais, que, pelo sistema anterior lhes garantiam, pelo menos, um mínimo de organicidade. Ou seja, estariam trocando o que conhecem, e sabem como interagir, pelo que lhes parece uma aventura tão complexa (nefasta??…) quanto à sistemática a que estão acostumados; estariam, afinal, “trocando apenas de patrões”.
A comunidade agrícola do Punjab, na imensa maioria da religião sikh, está reagindo de maneira cada vez mais violenta ao governo central. Não somente os manifestantes ocuparam com seus tratores as fronteiras que definem os limites entre os estados de Punjab e Haryana e Nova Delhi, como acirraram os ânimos dos partidos de oposição ao governo do Bharatiya Janata Party, do Primeiro-Ministro Narendra Modi. Nas celebrações do “Dia da República”, em 26 passado, eles chegaram a ocupar o Forte Vermelho (Red Fort), um dos ícones históricos da capital indiana. A eles se juntaram os Jats, outra comunidade agrícola importante, que vive no estado de Haryana, na lindeira com Delhi. Como tem ocorrido enfrentamentos entre os manifestantes e a comunidade local, a polícia de Delhi interditou as estradas que se dirigem à capital. Também foi bloqueada a internet na região. Na busca de encontrar uma via de negociação, o governo central se propôs a suspender a aplicação da lei por 18 meses e afirmou que o Ministro da Agricultura, Narendra Singh Tomar, está pronto a discutir – “just a phone call away” – a questão com os manifestantes, que até agora têm recusado as conversações.
Estes são os fatos…mas o que subjaz a eles?
O “buraco” fica muito mais embaixo… Trata-se, na verdade, do empenho de Narendra Modi em promover e acelerar uma mudança radical da economia e sociedade indianas. Modi, ex-“Chief Minister” (governador) do Estado de Gujrat, onde realizou uma gestão considerada muito exitosa, tem características pessoais muito definidas: hindu ortodoxo e afiliado à corrente do Hindutva, que sufraga o predomínio da população hindu – 79.8% – na vida pública do país, seu governo vem criando arestas com as outras religiões. O sikhismo, a religião da grande maioria dos agricultores manifestantes do Punjab, é uma delas.
E atinge sobretudo a comunidade muçulmana, a segunda maior da Índia (aproximadamente 13%), e a terceira (10,3%) do mundo. Em dezembro de 2019, seu governo conseguiu a aprovação da “Lei de Cidadania” (Amendment Act – CAA), sob a qual, pela primeira vez na Índia a religião tornou-se uma base para a concessão de cidadania. Com efeito, esta lei especificamente acelera as reivindicações de asilo para imigrantes irregulares não-muçulmanos dos países vizinhos de maioria muçulmana do Afeganistão, Bangladesh e Paquistão. Ela estabelece, também, um processo de verificação de cidadania através um “Registro Nacional de Cidadãos” que identifica “imigrantes ilegais”, o que desperta o temor de milhões de muçulmanos que residem no país há muitas gerações. Esta lei afronta a própria Constituição da Índia, que no seu preâmbulo define o país como “uma República soberana, socialista, SECULAR e democrática”.
Mas, com tais características, Modi tem urgência em modernizar a economia e, neste ímpeto, tem promovido mudanças que a sociedade, principalmente os habitantes das áreas rurais (65,53%), não está preparada para enfrentar, como a adoção de cartões de crédito em todo o território e a “desmonetização” da economia. Para isto o PM conta com o apoio denodado da comunidade empresarial urbana.
Aliás, o que parece estar ocorrendo é uma cissiparidade na sociedade indiana: de um lado, a grande maioria da população, conservadora e profundamente religiosa que povoa seus vilarejos, e de outro, os mundos empresarial e parte do político, urbanos, que têm pressa em vencer o que percebem como uma nefasta defasagem entre a Índia e as economias avançadas. Este é um enorme desafio, do qual a questão agrícola do Punjab é apenas mais um exemplo: sintonizar um governo “progressista”, que vislumbra o relacionamento equilibrado entre agricultores – muitos minifundiários analfabetos – e os grandes empresários e suas companhias, muitas transnacionais, com as múltiplas realidades da Índia. Possível?
O que está ocorrendo agora me fez relembrar o assassinato de Indira Gandhi, em 1984, quando eu servia na nossa Embaixada em Nova Delhi e presenciei os momentos talvez mais dramáticos em toda a minha carreira. A razão da sua morte foi a ordem que ela deu para que o exército indiano invadisse o Templo Dourado, de Amritsar, que é a sede – o “Vaticano” – da religião sikh, para curvar o movimento secessionista então liderado por Jarnail Singh Bhindranwale, que juntamente com seu partido Akali Dal iniciara uma rebelião para criar um estado autônomo sikh na Índia, o Khalistan. Estaria Delhi – e Modi – provocando repetir a História e despertar um gigante adormecido?
Ousadia, ou disfunção? Um espelho para outras sociedades?
“To be continued”… Sugiro aos amigos que leiam a matéria abaixo do site “Project Syndicate”:
Farmers vs. the Indian State | by Jayati Ghosh – Project Syndicate