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O Afeganistão na encruzilhada (III) – os talibãs, o EI-K, os hazaras e a China

Um grupo de hazaras de Daykundi observando o Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA inspecionar um local do projeto em sua província (Foto Wikipedia)

No último dia 8/10, um militante do Estado Islâmico-K/EI-K (por Korazan, falange afegã do Estado Islâmico), perpetrou um atentado suicida contra uma mesquita xiita na cidade de Kunduz, no norte do país, e matou dezenas de fieis, confirmando o crescente enfrentamento entre os sunitas e a comunidade xiita. Este é mais um episódio que revela a enorme dificuldade que o Talibã encontrará para se afirmar como governo legítimo do país, tanto interna quanto externamente.

Numa postagem anterior eu havia assinalado que o intento hercúleo do Talibã de concretizar sua ânsia de retomar o poder desde que, em 2001, foi rechaçado de Cabul pelas tropas ocidentais e obrigado a entrar na clandestinidade, enfrentaria árduos obstáculos. Eu lembrava, então, que é necessário recorrer à História e às características da civilização afegã para entender o que está em jogo. Salientei que, do ponto de vista interno, a primeira observação relevante – fundamental mesmo, por tautológica que possa parecer – é que o Afeganistão é uma civilização muito antiga; já existia como satrapia persa quando Alexandre III da Macedônia, o Grande, andou pela região e fundou, em 334 AEC, Balhk, um do postos mais avançados das tropas gregas na Ásia Menor. Esta população se espalha pelos pequenos vilarejos isolados nas crevasses das montanhas do Hindu Kush.

Esta mesma população, de hábitos ancestrais, é constituída por um largo espectro de etnias e tribos que resultaram da ocupação de invasores de várias origens – persas, gregos, mongóis, etc. – que inseminaram, tanto na genética quanto nas arraigadas tradições, valores e conceitos, que cada uma delas defende “erga omnes”. Embora sua maioria quase absoluta seja da corrente sunita do Islã (cerca de 90%, ainda que os dados não sejam precisos), a qual concebe a estrutura da sociedade em torno de um califado que se poderia definir como um “Estado” religiosa e politicamente estruturado, a malha étnica é muito mais diversa. Além da etnia pashtun (42%), que compõe a maioria dos talibãs, há dezenas de outras: a constituição de 2004 lista nominalmente quatorze etnias, dentre as mais representativas: os pashtun (42%), tajiques (27%), uzbeques (9%) e hazaras (8%). Isto sem contar os aimaqs, turcomanos, beluchis, pashai, nuristanis, gujjares, árabes, brahuis, qizilbashes, pamiris, quirguizes, sadats, e tantos outros. Todas elas reivindicam liderança absoluta sobre o seu território e população. Não somente isto, senão que muitas delas se espraiam pelas ramificações familiares pelos países vizinhos, negligenciado as fronteiras artificiais cunhadas pelas potências coloniais. E os hazaras, a quarta maior delas, na sua grande maioria xiitas que se dizem descendentes das tropas mongóis de Gengis Khan que se estabeleceram na Ásia central, são considerados uma comunidade “inferior” pelos pashtuns. Por esse motivo, sempre foram perseguidos e constantemente lembrados de sua “inferioridade”; o que os torna “alvo” do racismo sunita.

O massacre do dia 08 foi o segundo do Estado Islâmico-K em menos de uma semana. Sabemos que o grupo terrorista é inimigo figadal dos talibãs, a quem acusa de leniência e de comprometimento com as potências ocidentais. Estar-se-iam concretizando os temores de que os hazaras xiitas seriam novamente os “bodes expiatórios” dos sunitas, reacendendo o antagonismo atávico entre as duas principais correntes da fé? Como se sabe, este tema subjaz a todos os conflitos na região, do Iraque à Síria…

E, neste caso, aparentemente o “buraco é mais embaixo”, porque o terrorista que perpetrou o atentado de Kunduz, segundo a liderança do EI-K, seria da etnia “uighur” que vive na região de Xinjiang, na China. Não nos esqueçamos de que este é um dos temas mais sensíveis atualmente para as autoridades de Pequim, que se preocupam não somente com a militância em si, senão também pela má imagem que a questão desperta entre os países ocidentais. Foi justamente para se prevenir do espraiamento do terrorismo islâmico para dentro das fronteiras da sua Região Administrativa que o Chanceler chinês, Wang Yi, recebeu no final de julho uma delegação talibã, antes mesmo que o grupo desalojasse o então presidente Ashraf Ghani do poder, para “tratar de temas de grande sensibilidade para os chineses nas esferas política, econômica e de segurança”, segundo transpirou. Já então a Chancelaria chinesa, em comunicado assinalava que “o talibã é uma força militar e política crucial no Afeganistão e desempenhará um papel importante no processo de paz, reconciliação e reconstrução do país”… neste contexto, “a República Popular emprestará seu apoio desde que o Talibã corte qualquer conexão com o “Movimento Islâmico do Turquestão Oriental”/ETIM, organização terrorista internacional listada pelo Conselho de Segurança da ONU que representa uma ameaça direta à segurança nacional e à integridade territorial da China”: exemplo explícito de “real politik”…

Em resumo, a República Popular se propõe a prestar um apoio que é fundamental à liderança talibã, desde que esta consiga manter a militância radical longe das suas fronteiras. Entretanto, o atentado do EI-K, inimigo do Talibã, como disse, ameaça subverter esta promissora “parceria”, sobretudo diante da dificuldade que a liderança de Cabul ora vive para curvar o irredentismo das outras etnias e dos opositores dentro do seu próprio flanco e se afirmar como “legítima” perante a população e o resto do planeta. Um triângulo nefasto…

Factível?

Não nos esqueçamos de que em toda esta história a China permanece como uma opção importante para os novos donos do poder no Afeganistão. Os chineses já demonstraram que estão dispostos a interagir com esta liderança, que sinalizaram, aliás, reconhecer. Os atraem também as imensas reservas de cobre, lítio e terras raras ainda inexploradas no solo afegão, num momento em que os novos mandatários de Cabul necessitam desesperadamente de recursos externos para relançar a economia, provar a que vieram e se liberarem do comércio espúrio dos opiáceos, que tem constituído a sua principal fonte de recursos externos. A “Nova Rota da Seda” poderia constituir uma alternativa, desde que…

To be continued…

Outros artigos da mesma séria:

O Afeganistã na encruzilhada (II) – o gabinete do governo interino

O Afeganistão numa encruzilhada: cenários

Sugiro aos amigos que leiam a matéria abaixo do Estadão:

INTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR

Ataque do Estado Islâmico mata dezenas em mesquita xiita no norte do Afeganistão  – Internacional – Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.