Pois é…o Talibã é o dono do poder no Afeganistão, e não há muito o que o mundo possa fazer até que a situação no país esteja mais clara. Fecha-se o círculo cujo traçado teve início em dezembro de 1991 quando as tropas da “Enduring Freedom” e da “International Security Force” (ISAF), da ONU, lideradas pelos americanos, entraram em Cabul e expulsaram o grupo para as áreas rurais inóspitas nas províncias do Afeganistão, que entrou, então, na clandestinidade, mas nunca foi dizimado. Decorridos vinte anos retorna-se à “estaca zero”: eles foram… e voltaram…
Neste ínterim mudou a sociedade afegã, que passou a conviver com uma certa segurança e liberdade, sobretudo no que toca às mulheres, e com uma sensação de “normalidade”, administrada por um governo frágil, pelas tropas ocidentais e pelo que se imaginava ser o exército afegão treinado por elas.
O ressurgimento da militância talibã levou o ex-presidente Donald Trump a acelerar a sua promessa de campanha de “bring the American troops home”. Inimigos figadais sentaram-se à mesa de negociações em Doha, no Qatar, na busca de uma solução que fosse minimamente honrosa para os americanos/ocidentais: exercício de “real politik” ou pré-confissão de derrota? Nessa mesa se sentaram não somente os americanos, mas também delegados da Rússia, China e Paquistão, como testemunhas. A ONU também foi convidada para participar. Só não foi convidado o então Presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, numa clara demonstração da impotência do governo eleito de Cabul.
Ghani jamais aceitou os termos do “Agreement for Bringing Peace to Afghanistan”, que os negociadores – americanos e talibãs – concluíram em 29/02/20, cujos termos, analisados nos dias de hoje, pareciam fadados ao descumprimento. Entre eles, de parte dos americanos: 1) a retirada das tropas americanas e aliadas, inclusive os civis que prestaram serviços para os ocupantes, no prazo de até 14 meses após o anúncio do acordo; 2) a troca de cerca de 5 mil prisioneiros detidos pelos talibãs pelos cerca de mil ocidentais, até março de 2020; 3) a remoção das sanções impostas contra os membros dos talibãs; e 4) o engajamento dos EUA em negociações com o Conselho de Segurança da ONU neste mesmo sentido.
De parte dos talibãs, que se identificavam no documento como “Emirado Islâmico do Afeganistão que não é reconhecido pelos Estados Unidos como estado e é conhecido como talibã”, os compromissos foram de: 1) não permitir que qualquer de seus membros, indivíduos ou grupos – inclusive a Al Qaeda, nomeada explicitamente – utilize o solo do Afeganistão para ameaçar a segurança dos Estados Unidos e seus aliados: 2) impedir que seus membros cooperem com outros grupos que ameacem a segurança dos Estados Unidos/aliados, inclusive no que toca ao recrutamento, treinamento e financiamento de suas atividades; e 3) não fornecimento de visas, passaportes, documentos de viagem ou qualquer outro instrumento legal a indivíduos que possam ameaçar a segurança dos Estados Unidos/aliados.
No seu final, o documento afirma que “os Estados Unidos e o Emirado Islâmico do Afeganistão envidarão esforços na busca de um relacionamento positivo (“seek positive relations”) entre os EUA e o governo institucionalizado em Cabul (“the new post-settlement Afghan Islamic government”), a ser definido nas negociações entre os próprios afegãos (“the intra-Afghan dialogue and negotiations”).
Ou seja, um repertório das “boas intenções” que até agora não se concretizaram, até porque o caos que o país está vivendo não permite traçar qualquer estratégia de negociação, ou sequer previsão quanto ao seu futuro Mas, pela importância e sensibilidade da questão, é válido buscarmos delinear alguns cenários, ainda que absolutamente provisórios.
Vamos primeiramente recorrer à História e às características da civilização afegã. Do ponto de vista interno, a primeira ilação relevante, fundamental mesmo, por tautológica que possa parecer, é que o Afeganistão é uma civilização muito antiga; já existia como satrapia persa quando Alexandre III da Macedônia, o Grande, andou pela região e fundou, em 334 AEC, Balhk, um dos seus postos mais avançados na Ásia Menor. A população guarda até hoje traços físicos dos gregos ancestrais. Esta mesma população, de hábitos igualmente ancestrais, é constituída por um grande elenco de etnias e tribos que resultaram da ocupação de invasores de várias origens – persas, gregos, mongóis, etc. – que inseminaram, tanto na genética quanto em arraigadas tradições, valores e conceitos, os quais cada uma delas defende “erga omnes”. A constituição de 2004 e o hino nacional afegão listam nominalmente quatorze, dentre as quais as mais representativas: pashtun, beluchis, hazaras, turcomanos e tajiques.
Estas etnias e tribos, que se repartem entre as correntes sunita e xiita do Islã – 90% sunitas e 10% xiitas, a grosso modo – não aceitam a preponderância de qualquer outra sobre si, por maior que ela seja numericamente. A respeito, é da maior dentre elas, a pashtun, sunita (cerca de 20% da malha etnográfica), que surgiu o movimento talibã na luta contra os invasores soviéticos, na década de noventa do século passado, e que hoje compõe a militância que está no poder em Cabul. A pergunta que não quer se calar é se esta liderança detém o mandato das outras etnias para governar em nome de todas. E a resposta é NÃO, ainda que neste momento sejam os talibãs pashtun que respondem por todo o processo.
Na verdade, a grande tarefa que eles têm pela frente é justamente convencer as outras etnias a aceitar este “status quo”, sobretudo a extrema rigidez e ortodoxia dos seus conceitos políticos, culturais e religiosos: em suma, o mandato da “sharia”, a lei islâmica. Historicamente, os acordos entre etnias e tribos são alcançados nas discussões da assembleia dos seus líderes, a “loya jirga”. Ela delibera e impõe a aceitação das suas decisões consentidas, justamente o que, por não ter ocorrido até agora, constitui a médio e longo prazos o “calcanhar de Aquiles” dos atuais “senhores de Cabul”. Esta situação momentânea nos faz recordar as disputas entre as milícias que lutavam contra os soviéticos na década de 1990. A pacificação interna é, assim, o primeiro – e enorme desafio – da liderança talibã. A menos que isto aconteça não será possível construir um Afeganistão estável.
Acrescente-se a este já complexo dilema a questão de que eles próprios estão divididos entre várias tribos que se espalham pelas províncias rurais e prestam lealdade a seus “amirs”(”warlords”) locais, cada um com seus “vested interests”. É, aliás, o que está ocorrendo neste momento: ao tempo em que a liderança que ocupou Cabul afirma ter força para manter o compromisso assumido nos Acordos de Doha e preservar a incolumidade física de todos os que interagiram com os ocupantes ocidentais, corre solta a violência contra os “colaboradores”. Trocando em miúdos, a tarefa de convencimento e de consolidação do poder é hercúlea para esta liderança, e coloca em suspenso qualquer certeza de que o “reinado” talibã será duradouro. Já vimos filme semelhante durante o período soviético.
O outro – igual, senão maior – desafio para os talibãs é obter reconhecimento pela comunidade internacional. Embora tenha constado no documento de Doha que os Estados Unidos se empenhariam neste esforço, à luz da maneira “intempestiva” pela qual se deu a investida talibã, expondo Washington a um vexame similar ao da Guerra do Vietnã – de trágica memória para a população americana -, dificilmente os EUA acatarão de imediato o acordado. Joe Biden sofreu demasiado constrangimento e sua imagem ficou muito desgastada para agora ”apadrinhar” o pleito, penso eu. Não nos esqueçamos de que no período Talibã-I (1996-2001) somente a Arábia Saudita, o Paquistão e os Emirados Árabes Unidos reconheceram a liderança de Cabul. E o reconhecimento internacional é fundamental, como sabemos, para que um Estado/governo possa atuar de maneira minimamente eficiente no cenário internacional.
Alguns governos têm sinalizado que a aceitação simbólica dos talibãs e a desesperadamente necessária assistência financeira poderiam ocorrer se seus líderes mostrarem que podem respeitar os direitos humanos, como o Ocidente os entende. Aliás, os diferentes graus de acolhimento pela comunidade internacional desde que os militantes chegaram ao poder em Cabul ilustram as divisões acentuadas entre aliados e adversários dos EUA — uma prévia da disputa internacional como uma nova e incerta dinâmica diplomática que toma conta em relação ao Afeganistão. “Os talibãs venceram a guerra, então teremos que conversar com eles”, afirmou Josep Borrell, principal diplomata da União Europeia, em uma coletiva de imprensa. Segundo ele, “não é uma questão de reconhecimento oficial. É uma questão de lidar com a realidade”. Entretanto, a UE decidiu, por ora, não fazê-lo. O ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, disse em entrevista ao canal de notícias BFM TV, no último dia 18, que a questão do reconhecimento do Talibã “não é relevante para a França”. O “Premier” britânico, Boris Johnson, afirmou, de sua parte, que “seria um erro para qualquer país reconhecer qualquer novo regime em Cabul de forma prematura, ou por iniciativa bilateral”.
Os mais atentos a esta questão são os países vizinhos, preocupados com o fluxo de migrantes que buscarão refúgio nos seus territórios. Muitos deles não têm condições – financeiras ou políticas – de os aceitar, até porque já contam com um enorme número de refugiados afegãos. O vizinho Paquistão reconhece oficialmente a existência de 1,4 milhão deles; entretanto o número é muito maior, devido às fronteiras porosas entre os dois e aos laços de família que os talibãs constituíram na época em lá viviam durante o regime soviético. O Irã contabiliza 780 mil refugiados, com uma “agravante”: pode ter, de acréscimo, problemas de cunho religioso, pois a imensa maioria da sua população é da corrente xiita do Islã, e os afegãos são sunitas. Para toda a vizinhança o transbordamento da radicalização religiosa é uma grave ameaça, principalmente no caso do Paquistão, cuja população mais ortodoxa e os setores de inteligência (ISI) têm vínculos estreitos com os talibãs. E a Índia teme o espraiamento do “terrorismo” para a região da Caxemira, até hoje dependente de uma partilha herdada do colonialismo britânico que põe em risco a segurança de toda a Ásia do Sul, sabido que tanto ela quanto o Paquistão dominam o ciclo da energia nuclear e possuem armas atômicas capazes de gerar uma catástrofe de dimensões inimagináveis caso caiam em mãos radicais.
Em toda esta história a China permanece como uma alternativa para os novos donos do poder no Afeganistão. Os chineses já demonstraram que estão dispostos a interagir com a nova liderança, que sinalizaram, de maneira explícita, reconhecer. Conforme postei anteriormente, no dia 28 de julho passado uma delegação talibã, chefiada pelo seu co-fundador e até agora principal líder, Mullah Abdul Ghani Baradar, encontrou-se em Tianjin, na China, com ninguém menos que o Chanceler Wang Yi para tratar de temas de grande sensibilidade para os chineses nas esferas política, econômica e de segurança. Conforme o comunicado da Chancelaria, “o talibã é uma força militar e política crucial no Afeganistão e desempenhará um papel importante no processo de paz, reconciliação e reconstrução do país”, e a República Popular emprestará seu apoio desde que “o Talibã corte qualquer conexão com o “Movimento Islâmico do Turquestão Oriental”/ETIM, organização terrorista internacional listada pelo Conselho de Segurança da ONU que “representa uma ameaça direta à segurança nacional e à integridade territorial da China”, conforme assinala o mesmo comunicado. Evidentemente, de “lambuja” vem um território crucial para os projetos da “Nova Rota da Seda”/BRI dos chineses. Este, sim, é um exemplo explícito de “real politik”.
Quem perde – e quem ganha – em toda esta história? É ainda cedo para se deslindarem as “cenas dos próximos capítulos”. Uma coisa é certa, porém: o desgaste recorrente dos setores de inteligência americanos – a CIA e suas comparsas – que com todos os recursos de que dispõem não previram e nem calcularam a rapidez com que o processo se desenrolou. Repete-se, no Afeganistão, o cenário do Vietnã, do Iraque, da Líbia e da própria Siria, ou seja, a incapacidade do Ocidente central de entender o “outro”, o Oriente, como ele é, e não pela imagem fantasiosa – e fetichista – que insiste em preservar de um mundo que, em acelerada transformação, persiste em retificar.
O saldo – trágico – de tudo isto são as milhares de vidas perdidas… em vão pelo que constatamos.
(Leia também “O Afeganistã na encruzilhada (II) – o gabinete do governo interino” e “O Afeganistão na encruzilhada (III) – os talibãs, o EI-K, os hazaras e a China“)
Postei abaixo uma foto que tirei de refugiados afegãos quando servi em Islamabade e Cabul:
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