ISSN 2674-8053

O fim de um governo que não começou

Presidente Jair Bolsonaro

A memória na política é curta, até porque a política é a arte da paixão, e as paixões são efêmeras. Dada a complexidade das sociedades contemporâneas, os cidadãos não têm tempo, competência ou mesmo desejo para se engajar em todas as discussões que passam pela política, e o resultado disso é que queremos encontrar políticos que nos apresente uma visão de mundo que compreendemos e gostamos, simplificando toda a complexidade e nos fazendo acreditar que o mundo é simples. 

Em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro conseguiu apaixonar 57,8 milhões de eleitores brasileiros. Uma pequena parcela desses eleitores conhecia as propostas difusas de Bolsonaro, uma grande maioria via no capitão reformado uma chance de não ter mais o PT no governo. Por mais que tenha sido um voto anti-algo, Bolsonaro conseguiu apaixonar esses eleitores, agora esperançosos de uma nova fase para o Brasil, onde as coisas seriam diferentes, seriam como cada um imaginava. 

A grande questão é que Bolsonaro não tinha um projeto, além de ser o anti-PT. Não por menos, passou a primeira parte do seu mandato acusando o PT das mazelas do Brasil. Gastou um tempo precioso com isso não percebendo que seus eleitores começaram a perder a paixão. Isso não aconteceu porque Bolsonaro mudou de posições, mas sim porque cada um de seus eleitores foi percebendo que apenas ser anti-PT não era suficiente, que era preciso um plano, um projeto. E cada eleitor se viu sozinho, com sua ideia de como Bolsonaro o tinha apaixonado. Hoje, cada um percebe que os votos de Bolsonaro não significavam uma voz uníssona, uma paixão única. 

Bolsonaro e sua equipe até tentaram recuperar o tempo perdido, mas também não foram capazes de encontrar um projeto único. Os diversos matizes de discursos não se somam, mais do que um eixo, se aproxima de uma estrela, com pontas para todos os lados. Numa ponta tem o discurso religioso-conservador, tão bem vocalizado na já não mais proeminente ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Em outra ponta há o pseudodiscurso modernizador do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Numa terceira ponta está o ministro da Economia, Paulo Guedes, com uma rouca proposta liberal que não tem qualquer respaldo concreto do presidente ou espaço real de avanço dentro do Congresso. Pode-se, ainda ver o ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia e Inovação tendo suspiros de aparições com ideias descontextualizadas e destacadas de qualquer esforço mais orgânico do governo. A lista poderia seguir, com pontos baixos (com os ministros inexpressivos) ou altos (com especial destaque para os militares sérios e que tentam salvar o governo). 

A troca de 6 ministérios, na esteira da inviabilidade de manutenção do chanceler Ernesto Araújo, só veio coroar a dificuldade que o presidente tem em criar uma narrativa que seja capaz de apaixonar novamente uma parcela importante dos cidadãos brasileiros. Bolsonaro se apega a umas poucas bravatas e, mais do que tudo, ao objetivo de mostrar que ele é o presidente, portanto, quem manda. Mas, em política tudo é paixão, não mando. Como diz Nelson Mandela em sua autobiografia, “em política, as circunstâncias fazem os fatos”.  

Hoje conseguimos perceber de forma mais clara que o governo Bolsonaro nunca começou. Os discursos mais radicais mantêm bolsonaristas igualmente radicais buscando a promoção do presidente, mais com uso da violência e ameaça do que da argumentação e dos fatos. Os demais, abandonaram o presidente e a política, esperando que uma nova paixão apareça. No mais, Bolsonaro continuará fechado em seu pequeno mundo, mostrando que é o chefe. Cada vez mandará mais, em menos. Seus círculos mais próximos começam a ruir, os apoiadores de outrora saem, bem devagar para não chamar a atenção. Não se trata de olhar apenas para a contínua troca de ministros, mas também para o segundo escalão, onde efetivamente as decisões que moldam o Estado são tomadas e implementadas. 

Tendo a achar que logo Bolsonaro se tornará tão tóxico aos políticos – eternos buscadores de paixões e seus consequentes votos –, que se afastarão ainda mais, deixando um presidente fechado em seu palácio. Impeachment me parece o mais provável, especialmente se o presidente responder a essa crise política que vive com mais autoafirmação. Por outro lado, caso Bolsonaro resolva efetivamente ceder para o chamado Centrão, como uma forma de manter-se à frente da presidência, será engolido com ainda mais rapidez. O Centrão é insaciável por recursos, e não há o que Bolsonaro faça para conseguir atender a tudo. 

Bolsonaro apaixonou em 2018, mas seu governo não. Nunca houve um projeto de Estado (ou mesmo de governo) e o presidente não foi capaz de transformar aquela paixão inicial em um projeto. Assim, Bolsonaro é o presidente, mas não preside. Seu governo não começou efetivamente na posse, e agora mostra que já acabou. Talvez continue presidente até o final do ano que vem, mas continuará sem a capacidade de construção de um projeto. Daqui há muitas gerações o que se falará deste período é que tivemos um presidente que não foi capaz de lidar com uma crise e propor um projeto nacional.

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X