Artigo elaborado por Julia Nascimento Aguilar* e Natália Yuri Kitayama*
“Devemos melhorar a cultura como parte do soft power do nosso país para melhor garantir os direitos e interesses culturais básicos do povo”. Essa frase foi parte do discurso do ex-presidente Hu Jintao (2017) da República Popular da China, antes do 17º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC) — o qual vem adotando a estratégia de fortalecimento do soft power chinês para aumentar a presença de seu Estado no sistema internacional (BECARD; FILHO, 2019).
Como parte da estratégia de promoção cultural, iniciada na década de 1970, o PCC empreendeu três ondas de reformas culturais. A primeira, de 1978 a 1997, conduzida por Deng Xiaoping, iniciou o processo de abertura de mercado e a reforma econômica de socialismo de mercado. A segunda, entre 1998 e 2002, estabeleceu a Divisão de Indústria Cultural do Ministério da Cultura e, com isso, formalizou a utilização da cultura como ferramenta de promoção da agenda governamental. Um exemplo desse movimento de abertura a ser citado é o acordo com os Estados Unidos de 1999. Este visou a eliminação de barreiras à entrada de produtos e serviços estrangeiros no mercado, diminuindo em 23% as taxas de importação para o mercado chinês, incluindo o setor de telecomunicações e filmes de Hollywood (BBC, 2021). A última onda veio após 2009, ano no qual foi lançado o “Plano de Promoção da Indústria Cultural” pelo Conselho de Estado.
O Plano de Promoção da Indústria Cultural foi anunciado no 17º Congresso do PCC, e reforça as ideias propostas anteriormente por Deng Xiaoping de desenvolvimento cultural, de modo que esta indústria fomente a economia nacional. Alguns dos princípios básicos são: benchmarking[1]; promover o desenvolvimento da cultura étnica chinesa; persistir no desenvolvimento doméstico e estrangeiro simultaneamente; criar abertura do mercado cultural interno e externo; e fortalecer a influência da cultura chinesa no nível internacional (CREEMERS, 2009).
O Plano de Promoção tem surtido efeitos positivos para o país, visto que a China possui o mercado de filmes que mais cresce no mundo ultrapassou o Japão em 2012, tornando-se o segundo maior mercado de filmes do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos). O mercado de filmes chinês teve uma queda em aproximadamente 32% no período de entre 2019 e 2020, mas apresentou uma recuperação no ano seguinte (gerando receita de 46,26 bilhões de yuan em 2021) (STATISTA, 2022), o que não foi suficiente para alcançar os números pré-pandemia (2019), mas continua gerando alta receita de bilheterias (PHEURON, 2015).
Apesar de o governo de Pequim incentivar a indústria cinematográfica, um rígido controle sobre a mídia é exercido, o que limita a criação e distribuição de conteúdos do setor de entretenimento. A estratégia de expansão assegura o controle do ciclo produtivo da indústria de entretenimento estrangeira, o que inclui financiamento, roteirização, produção e edição para distribuição dos filmes. Além disso, há uma ativa colaboração sino-estrangeira na indústria de entretenimento que é algo a ser destacado (PHEURON, 2015).
Filmes estrangeiros permeiam o mercado chinês, embora devam seguir algumas medidas de controle. Há duas formas para entrada de filmes produzidos no exterior: Revenue-sharing (partilha de receitas) e flat-rate (taxa fixa). A primeira funciona com um sistema de cotas, de 34 filmes por ano (2014), em que os poucos filmes permitidos devem ser distribuídos por apenas duas empresas autorizadas: China Film Group Corporation e Huaxia Film Distribution Co., Ltd e as empresas estrangeiras são responsáveis por todos os custos de marketing, que representaram em média 11% das receitas de bilheteria em 2014. A segunda estratégia, também conhecida como buy-out, consiste na compra dos direitos de distribuição dos filmes por uma taxa-fixa, realizada por empresas chinesas autorizadas. Os filmes adquiridos por flat-rate passam pelo sistema de análise e censura do PCC, todavia, o governo chinês tem se tornado um relevante importador das obras hollywoodianas (CHARLTONS, 2015).
Devido às imposições de censura às produções estrangeiras, produtoras buscaram meios alternativos de adentrar o mercado cultural chinês. A coprodução é a estratégia mais utilizada atualmente, a qual envolve a parceria da China com as produtoras estrangeiras no investimento e produção dos filmes. Esta demonstra ser uma opção viável às produtoras estrangeiras porque, ao dividir produção e distribuição do conteúdo entre as partes, o filme não passará pela importação chinesa, o que abre espaço para negociações do share da produtora estrangeira, geralmente maior do que nos casos de importação (CHARLTONS, 2015).
Para que as coproduções ocorram, é necessário que o parceiro chinês possua a licença de produção de filmes do órgão regulador — State Administration of Radio, Films and Televisions (SARFT). Com isso, muitas produtoras estrangeiras envolvem a China Film Co-Production Corporation (CFCC), uma organização autorizada pelo SARFT para administrar as coproduções ao fornecer informações sobre a prática, o cenário da indústria e os recursos de coprodução da China Continental (CHARLTONS, 2015). Há alguns exemplos de grande bilheteria feitos com o sistema de coprodução, entre eles Homem de Ferro 3 (2013), Transformers: A Era da Extinção (2014), Velozes e Furiosos 7 (2015) e Kung Fu Panda 3 (2016). As coproduções são consideradas filmes de produção nacional no que se refere às cotas chinesas na área de entretenimento, sendo assim uma estratégia para transpor as barreiras impostas pelo CFCC. Contudo, há algumas exigências a serem cumpridas, como a obrigatoriedade de que um terço do elenco do filme seja chinês e que este contenha “elementos chineses” significantes (FLEW, 2018).
Há três tipos de coproduções autorizadas pelo governo chinês: produção conjunta, produção assistida e joint-venture. A primeira é uma colaboração entre a produtora estrangeira e chinesa, sendo que ambas investem e produzem o filme e, consequentemente, dividem os direitos autorais. É o modo de coprodução mais utilizado, já que é uma colaboração entre uma parte estrangeira e uma chinesa, fazendo com que os investimentos, produção e direitos autorais sejam divididos, mas ainda sendo considerado um filme nacional que pode ser lançado após a análise do governo. A segunda dispõe de investimentos somente estrangeiros e com a contratação de uma empresa chinesa para a produção do filme, cujos direitos autorais são detidos pela parte estrangeira e, por isso, precisa passar pelo processo de importação. A última consiste em uma joint-venture[2] societária — em que as partes envolvidas detêm participações igualitárias, assim como dividem riscos, perdas e ganhos — ou cooperativa — as partes possuem maior liberdade para negociar suas participações no filme, podendo constituir uma sociedade de responsabilidade limitada, em que as partes envolvidas podem ter responsabilidades distintas — entre empresas estrangeiras e chinesas (CHARLTONS, 2015).
O sistema de coproduções permite não apenas a entrada de filmes estrangeiros na China, mas também a disseminação da cultura e do próprio Estado chinês internacionalmente, endossando o discurso de Hu Jintao de fortalecimento do uso da cultura como parte do soft power do país. A conquista do título de segundo maior mercado de filmes no mundo e a posse de filmes recordes de bilheteria indicam o potencial das políticas adotadas pelo governo chinês, e os efeitos do plano de longo prazo nessa indústria, que ainda estão se desenvolvendo, sinalizam para alcançar maiores marcas.
Referências:
BBC, Redação. Como duas décadas de expansão criaram o “século da China”. 13 dez. 2021. BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55989290. Acesso em: 7 mai. 2022.
BECARD, Danielly Silva Ramos; FILHO, Paulo Menechelli. Chinese Cultural Diplomacy: instruments in China’s strategy for international insertion in the 21st Century. Rev. Bras. Polít. Int., 62(1): e005, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201900105. Acesso em: 11 mai. 2022.
BEIJING LEEO CONSULTING SERVICE CO. Equity joint ventures. Disponível em: http://www.cn-visa.com/joint_ventures.asp. Acesso em: 5 mai. 2022.
CFCC – CHINA FILM CO-PRODUCTION, Corporation. About Us – CFCC. Disponível em:http://www.cfcc-film.com.cn/introeg/intro.html. Acesso em: 2 mai. 2022.
CHARLTONS. China’s Film Industry. Charltons Law. 2015. Disponível em: https://www.charltonslaw.com/hong-kong-law/china-film-industry/. Acesso em: 11 mai. 2022.
COONAN, Clifford. China Box Office: “Furious 7” Becomes Highest-Grossing Movie Ever. Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-news/china-box-office-furious-7-791923. Acesso em: 14 mai. 2022.
CREEMERS, Rogier. Cultural Industries Promotion Plan. China Copyright and Media. 2009. Disponível em: https://chinacopyrightandmedia.wordpress.com/2009/09/26/cultural-industries-promotion-plan. Acesso em: 7 mai. 2022
FLEW, Terry. Understanding Global Media. 2. ed. Macmillan Publishers Ltd. 2018.
LEHMAN, Lee & Xu. What is a cooperative joint venture? Disponível em: http://www.lehmanlaw.com/resource-centre/faqs/business-structures/what-is-a-cooperative-joint-venture.html. Acesso em: 5 mai. 2022.
PHEURON, Tay Jia Xin. China’s Ambition in the Entertainment Industry: An Analysis of “Chinese Expansion Model” and Sino-Foreign Collaboration in the Chinese Entertainment Industry. Graduate School of Seoul National University Graduate Program in International Area Studies, China Area Studies. 2015.
SPENDOLINI, Michael J. The Benchmarking Book. 2. ed. Amacom, 1994.
STATISTA. Film Industry in China, dossier. 2022. Disponível em: https://www.statista.com/study/15709/film-industry-in-china-statista-dossier/. Acesso em: 26 jun. 2022.
WOLFFENBÜTTEL, Andrea. O que é? Joint venture. 3 ago. 2016. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2110:catid=28&Itemid=#:~:text=Joint%2Dventure&text=Traduzindo%2Dse%20ao%20p%C3%A9%20da,delas%20perca%20a%20identidade%20pr%C3%B3pria. Acesso em: 5 mai. 2022.
* Pesquisadoras do Núcleo de Estudos em Negócios Internacionais (NENA) da ESPM
[1] Benchmarking pode ser definido como “um processo contínuo e sistemático para avaliar produtos, serviços e processo de trabalho de organizações que são reconhecidas como representantes das melhores práticas, com a finalidade de melhoria organizacional”. (SPENDOLINI, 1993, p. 10)
[2] Joint-venture é uma associação ou junção de empresas para realização de um projeto ou atividade específica (WOLFFENBÜTTEL, 2016).