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O tal do poder (III): O “x” da questão: a OTAN

Foto de Kenzo TRIBOUILLARD / AFP

O diplomata e analista político Ronald D. Asmus, juntamente com seus colegas Richard Kugler e Stephen Larrabee, do “think tank” americano RAND, criado logo ao final da II Guerra Mundial para promover estudos sobre questões de segurança dos Estados Unidos, numa matéria publicada na edição de setembro de 1993 da “Foreign Affairs”, intitulada “BUILDING A NEW NATO”, afirmavam, então, que “…uma fenda se abriu no seio da OTAN à medida que os interesses americanos e europeus divergiram sobre as guerras lideradas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque. Ambos os lados tiveram que considerar esses eventos como um “alerta”. No entender deles, “a aliança transatlântica precisava unir-se em torno de um novo propósito e de uma nova grande estratégia adequada para enfrentar um conjunto diferente de desafios além do território da Europa, ou correr o risco de se tornar cada vez mais irrelevante”.

Naquele momento, cumprido o papel importante que a organização desempenhara na Guerra Fria, o propósito da OTAN não estava claro; a União Soviética havia-se esfacelado, mas o “nacionalismo e os conflitos étnicos ainda ameaçavam a estabilidade da Europa”, segundo analistas ocidentais. Em 1995, o então secretário-adjunto de Estado norte-americano, Richard Holbrooke descreveu a expansão e missão da organização militar como “essencial” para “ampliar a unidade europeia na base de valores democráticos compartilhados”. Entretanto, o Professor Michael Mandelbaum, diretor do Programa de Política Externa da Universidade Johns Hopkins, de Washington, alertou que esta expansão seria “na melhor das hipóteses prematura, na pior das hipóteses contraproducente, e em qualquer caso em grande parte irrelevante para os problemas enfrentados pelos países situados entre a Alemanha e a Rússia”.

Foi neste cenário controverso que o mundo acompanhou os desencontros da atuação da organização em vários campos de batalha fora da Europa, o mais recente dos quais na crise talibã do Afeganistão, que deixou dela uma imagem muito negativa, como sabemos. Cabe também recordar a relutância anterior dos seus estados-membros em tomar medidas decisivas para garantir os interesses do Ocidente e proteger vidas na guerra da Síria, com consequências nefastas tanto dentro do país quanto na região vizinha. Segundo os críticos, a indecisão demonstrada pelos seus membros e a recusa de se envolverem no conflito abriu espaços que seus rivais geopolíticos – Irã e Rússia – aproveitaram para consolidar sua influência. Este mesmo padrão de comportamento repetiu-se agora em Cabul. E os exemplos se multiplicam…Iraque, Líbia…

E este mesmo dilema apresenta-se agora na crise da Ucrânia. Como sabemos, o país tem uma relação complicada com a Rússia desde o colapso da União Soviética, sobretudo após os protestos maciços da crise da Crimeia, em 2013-14, quando as inclinações ocidentais de Kiev pareceram se solidificar. A subsequente anexação da região pela Rússia, em 2014, refletiu uma estratégia mais ampla, argumentou Kathryn Stoner, professora do “Instituto de Estudos Internacionais” da Universidade de Stanford. Segundo ela “…a anexação foi uma tentativa pouco velada de encaminhar a verdadeira agenda de Putin: restabelecer a Rússia como um grande poder ressuscitado”. Na contra-leitura, seu colega, John Mearsheimer, sugeriu que foi, antes, uma reação à provocação dos Estados Unidos e da Europa dirigida contra Moscou. Segundo ele, “…a raiz do problema é o espraiamento da OTAN, elemento central de uma estratégia maior para retirar a Ucrânia da órbita da Rússia e integrá-la ao Ocidente”.

Afinal, qual é o papel da OTAN no planeta pós-soviético?

O ponto-chave do “Tratado do Atlântico Norte”, assinado em Washington, em 04/04/49, que deu origem à organização, no seu artigo V compromete cada um dos estados-membros a considerar um ataque armado contra um deles como um ataque armado contra todos. No momento da sua redação, o acordo tinha como escopo a defesa contra a investida da então-União Soviética a países da Europa Ocidental.

Qual é, na realidade, a abrangência deste tratado hoje em dia? Em qual cenário ele se insere? Acho importante, neste ponto, recorrer à História para tentar contextualizar os acontecimentos atuais…

Ancestralmente, a Rússia era formada por diversos domínios governados por príncipes aparentados entre si. A noção de “Império” subsiste desde a época em que o centro político da Eurásia, fundado em Kiev, no século IX, tornou-se o primeiro estado eslavo e adotou o cristianismo ortodoxo como religião, dando origem à síntese das culturas bizantina e eslava que acabaram por definir a “alma” russa. A “era dourada” do principado coincide com os reinados de Vladimir, o Grande (980–1015), que aproximou o Estado do cristianismo bizantino, e de seu filho Jaroslau I, o Sábio (re. 1019–1054), quando o principado atingiu o seu zênite cultural e militar. O substrato eslavo-cristão passou a ser a matriz comum à toda a região, com Kiev como capital do principado. Estas raízes são, no entender de Vladimir Putin, o esteio da civilização russa e forjaram a identidade das nações eslavas orientais nos séculos subsequentes. Desta forma, estes valores, endógenos a essas culturas, precedem qualquer conotação política.

No século XIV, o Grão-Ducado de Moscou passou a ocupar o poder e tornou-se o líder do Império Romano do Oriente. Ivan IV, “o Terrível”, foi coroado como o primeiro czar da Rússia, em 1547. Em 1613, Mikhail Romanov estabeleceu a dinastia que governaria a Rússia por muitos séculos. Sob o governo do czar Pedro, “o Grande” (1689-1725), o império continuou a expandir-se e tornou-se uma das maiores potências da Europa. No século XIX, a cultura russa estava no seu apogeu. Os ucranianos tiveram um papel importante na vida política do império, participando das guerras contra as monarquias europeias orientais e o Império Otomano. Posteriormente, porém, o regime czarista passou a executar uma agressiva política de “russificação”, proibindo o uso da língua ucraniana nas publicações e em público.

Entretanto, o colapso dos impérios russo e austríaco ao final da I Guerra Mundial e a Revolução Soviética, de 1917, ensejaram o ressurgimento de um movimento nacional em boa parte da Ucrânia em prol da auto-determinação. A cultura e língua ucranianas conheceram um florescimento. Foi então que nacionalistas e comunistas passaram a reivindicar uma maior autonomia para o país. Eles acabaram por vencer as eleições legislativas de março de 1990, e em 16 de julho daquele mesmo ano o parlamento ucraniano proclamou a soberania da república. Em 24 de agosto de 1991 foi aprovada a “Declaração de Independência da Ucrânia”, referendada por um plebiscito em dezembro. Do lado russo/soviético, com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao comando da URSS, teve início após 1985 a desconstrução do comunismo soviético. E finalmente, em 8 de dezembro de 1991, os presidentes da Ucrânia, da Federação Russa e da Bielorrússia declararam o fim da URSS, substituída pela “Comunidade de Estados Independentes”/CEI.

Entretanto, décadas de divisão política e crises institucionais contribuíram para a relativa fraqueza do Estado ucraniano – fraquezas que o presidente russo Vladimir Putin vem explorando agressivamente. Putin parece ter sucumbido a uma obsessão egocêntrica de restaurar o status da Rússia como grande poder mundial, com sua própria esfera de influência claramente definida. Este espírito “imperial” é o que anima o atual “Czar” da Rússia, como o chamam seus opositores… Tocar no seu “feudo”, principalmente nos territórios contíguos, significa para ele uma ameaça – política inclusive – superlativa. Nesse contexto, “aliciar” a Ucrânia para o universo da OTAN/Ocidente representa dupla afronta, e ameaça, tanto à hegemonia plurissecular russa na região como ao seu poder/imagem pessoal.

Estamos, portanto, diante de um duplo dilema: de um lado, os anseios do governo e da população ucranianos – à exceção das regiões “separatistas” – em prol do envolvimento da aliança ocidental no terreno de batalha, e de outro a recusa (até agora, pelo menos) da OTAN em se engajar de forma mais radical na disputa. Quem tem razão? Tirante a paranoia agressiva do líder russo e as consequências trágicas do seu desvario autoritário, não cabe indagar se, no fundo, não lhe cabem motivos para se opor ao avanço de uma organização que ainda busca uma real finalidade e que imporia, “erga omnes”, conceitos e valores que são esdrúxulos à região? Qual é o paradigma “correto”: faz sentido a retórica de “Ocidente” num mundo cada vez mais plural e globalizado? Será que a “otanização” da Ucrânia não criaria mais problemas, por retirar um território – um “buffer state” – necessário para permitir a convivência entre diferentes?

Em última instância, a partir do momento em que não existe mais o “comunismo inimigo”, qual seria o objetivo desta OTAN expandida? Impor a “pax ocidentalis” ao mundo, submetendo-o a valores definidos como universais a partir do Ocidente central? Seria o redescobrimento do “Admirável Mundo Novo” e do “Big Brother”?Igualmente tenebroso, penso eu… Novamente percebe-se, também na esfera internacional, a radicalização que assola sociedades e países atualmente, obstaculizando o respeito à alteridade tão necessário para o convívio entre as nações. E onde fica a Ucrânia neste filme? Trágico…

“To be continued”…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.