A matéria recente do Estadão “China, Índia e a nova ordem mundial”, dá o tom para estas minhas reflexões: a chamada afirma que “a competição entre uma China poderosa, mas em declínio populacional e uma Índia em ascensão mas com graves atrasos a superar, impactará a ordem econômica e geopolítica”.
Instigante, sim, mas óbvio?…É reconfortante ter-se vivido muito para poder refletir de maneira serena a respeito da impermanência e a transiência do poder mundial. Quando nasci, em junho de 1945, o “hegemon” planetário era…a Grã-Bretanha (“the sun never sets on the British Empire”, remember?)! Só que naquele exato momento a Europa, dilacerada pela II Guerra Mundial, iniciava a contragosto a desconstrução do império colonial que fizera a sua fortuna ao longo dos séculos XVIII e XIX. Primeiro sinal desta mudança de paradigma, a independência da Índia e do Paquistão, em 1947, prenunciava o processo de descolonização que passou a ser a tônica da segunda metade do século passado. Concomitantemente, duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, se engalfinhavam nos confrontos ideológicos da “Guerra Fria” e criaram o fantasma do holocausto nuclear que apavorou o planeta e deu origem à “deterrance” e à “détente”. Em 1991 desfez-se a União Soviética, e com ela a dicotomia “capitalismo X comunismo” que dominava a agenda internacional e criara a clivagem entre o Norte afluente e o “Terceiro Mundo” famélico. Restaram apenas os Estados Unidos, “hegemon” absoluto para impor, acompanhado do “Ocidente central”, seus valores civilizacionais como verdade absoluta: foi o tempo das guerras “westfalianas” – Iraque, Afeganistão, Coreias, Vietnã, etc. – enquanto a China “comunista”, que rompera com o maoísmo a partir do falecimento de Mao Zedong, em 1976, iniciava o seu processo de reformas e abertura, capitaneado por Deng Xiaoping, a partir de 1979. Assistimos atualmente a um filme cujo “script” conhecemos bem: Estados Unidos e China digladiam-se agora pela hegemonia do planeta pós-moderno e globalizado. Isto dentro do meu tempo de vida, ou seja em 77 anos! Claro que não acrescento nada de novo, só enfatizo a impermanência das hegemonias!
Isto porque agora surge no horizonte planetário uma civilização – mais que país – muito antiga. O analista Nouriel Roubini, professor-emérito da New York University’s Stern School of Business, afirma num artigo do “Project Syndicate” que a Índia está prestes a se tornar o mais importante país do mundo a médio prazo. Tem a maior população (que ainda está crescendo) e, com um PIB per capita apenas um quarto do da China, sua economia tem enorme margem para ganhos de produtividade. Além disso, a importância militar e geopolítica da Índia só crescerá, e trata-se de uma democracia vibrante cuja diversidade cultural gerará “soft power” que rivalizará com os Estados Unidos e o Reino Unido”.
Devaneio…será?…Vamos aos fatos:
Tive o privilégio de servir na Índia em dois momentos da minha carreira diplomática: primeiramente em Nova Delhi, em 1984, e depois em Mumbai, em 2009 (também servi na China, em 1994). Foram momentos muito distintos entre si, para a própria Índia. Convivi primeiramente com ela nehruviana, “não-alinhada” e fechada economicamente para o mundo, nas décadas de 70/80 do século passado, momento em que éramos, Brasil e Índia, os dois paladinos mundiais da política de reserva de mercado. Já em Mumbai, em 2009, convivi com o universo pujante da sua capital econômica e empresarial. Não só geograficamente, mas “culturalmente”, era como eu vivesse em dois países distintos, ainda que gêmeos univitelinos: em Delhi conheci o poder na sua acepção mais concreta e imperial, e em Mumbai testemunhei a pujança do seu empresariado. Neste espaço de tempo, sobretudo nesta última década, a Índia tornou-se um ator industrial e exportador significativo, mas está longe de se ombrear com a China, maior parceiro comercial para a grande maioria dos países. Só que a República Popular vem enfrentando desafios equivalentes ao seu porte: o envelhecimento da população é um deles, aliás definitório. Na contracorrente, mais de 50% da população da Índia tem menos de 30 anos de idade, com os desafios igualmente decorrentes: acesso à educação, qualificação da mão-de-obra, escassez de habitação, saneamento deficiente, mercado de trabalho, etc. são alguns dos mais evidentes. Mas, a longo prazo, os analistas asseguram que ela estará melhor preparada para os tempos futuros.
Neste contexto,“Make in India” foi a iniciativa lançada formalmente em setembro de 2014 pelo governo do atual Primeiro-Ministro Narendra Modi para incentivar as empresas a desenvolver, fabricar, montar produtos no próprio território, e alavancar os investimentos correspondentes. Esta abordagem visa criar o ambiente necessário para o desenvolvimento de uma infraestrutura moderna e eficiente, que abra espaços igualmente para o capital estrangeiro. Para isto foram selecionados 25 setores-chave da economia. O objetivo é “transformar a Índia num centro global de exportação de design e manufatura”, como especifica o plano, lançando mão da sua enorme vantagem comparativa no setor da tecnologia da informação. O alto empresariado indiano deu apoio entusiástico à iniciativa, elevando a popularidade de Modi aos píncaros. Este projeto não difere, aliás, do que fez o governo de Pequim, com o plano “Made in China 2025” que lançou em maio de 2015, com perfil assemelhado. Foram selecionados, então, dez setores de ponta que colocarão, assegura Pequim, o país na liderança da geoeconomia do século XXI. Ambos ambiciosos?…
O “nó górdio” de tudo isto reside na agenda política. Tanto Narendra Modi quanto Xi Jinping adotaram plataformas muito controvertidas. Modi por seu hinduísmo radical e antagonismo ferrenho à comunidade muçulmana da Índia – 14,2% da população do país, aproximadamente 172,2 milhões de pessoas, segundo o censo de 2011, e terceira maior população islâmica do planeta – o que lhe vem angariando crescentes críticas, tanto dentro quanto fora do país, e Xi pelo viés autocrático com que está conduzindo a China.
Será, então, que estarão preparados para assumir este desafio? Caso positivo, seria apenas um deles, ou um “condomínio asiático”? Qualquer que seja a solução, uma coisa me parece certa: a caravana da História está se dirigindo para o Oriente. E fica a pergunta: nós estamos preparados para conviver com um paradigma que desconhecemos quase que totalmente?