ISSN 2674-8053

A Índia na encruzilhada

A matéria recente do Estadão “China, Índia e a nova ordem mundial”, dá o tom para estas minhas reflexões: a chamada afirma que “a competição entre uma China poderosa, mas em declínio populacional e uma Índia em ascensão mas com graves atrasos a superar, impactará a ordem econômica e geopolítica”.

Instigante, sim, mas óbvio?…É reconfortante ter-se vivido muito para poder refletir de maneira serena a respeito da impermanência e a transiência do poder mundial. Quando nasci, em junho de 1945, o “hegemon” planetário era…a Grã-Bretanha (“the sun never sets on the British Empire”, remember?)! Só que naquele exato momento a Europa, dilacerada pela II Guerra Mundial, iniciava a contragosto a desconstrução do império colonial que fizera a sua fortuna ao longo dos séculos XVIII e XIX. Primeiro sinal desta mudança de paradigma, a independência da Índia e do Paquistão, em 1947, prenunciava o processo de descolonização que passou a ser a tônica da segunda metade do século passado. Concomitantemente, duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, se engalfinhavam nos confrontos ideológicos da “Guerra Fria” e criaram o fantasma do holocausto nuclear que apavorou o planeta e deu origem à “deterrance” e à “détente”. Em 1991 desfez-se a União Soviética, e com ela a dicotomia “capitalismo X comunismo” que dominava a agenda internacional e criara a clivagem entre o Norte afluente e o “Terceiro Mundo” famélico. Restaram apenas os Estados Unidos, “hegemon” absoluto para impor, acompanhado do “Ocidente central”, seus valores civilizacionais como verdade absoluta: foi o tempo das guerras “westfalianas” – Iraque, Afeganistão, Coreias, Vietnã, etc. – enquanto a China “comunista”, que rompera com o maoísmo a partir do falecimento de Mao Zedong, em 1976, iniciava o seu processo de reformas e abertura, capitaneado por Deng Xiaoping, a partir de 1979. Assistimos atualmente a um filme cujo “script” conhecemos bem: Estados Unidos e China digladiam-se agora pela hegemonia do planeta pós-moderno e globalizado. Isto dentro do meu tempo de vida, ou seja em 77 anos! Claro que não acrescento nada de novo, só enfatizo a impermanência das hegemonias!

Isto porque agora surge no horizonte planetário uma civilização – mais que país – muito antiga. O analista Nouriel Roubini, professor-emérito da New York University’s Stern School of Business, afirma num artigo do “Project Syndicate” que a Índia está prestes a se tornar o mais importante país do mundo a médio prazo. Tem a maior população (que ainda está crescendo) e, com um PIB per capita apenas um quarto do da China, sua economia tem enorme margem para ganhos de produtividade. Além disso, a importância militar e geopolítica da Índia só crescerá, e trata-se de uma democracia vibrante cuja diversidade cultural gerará “soft power” que rivalizará com os Estados Unidos e o Reino Unido”.

Devaneio…será?…Vamos aos fatos:

Tive o privilégio de servir na Índia em dois momentos da minha carreira diplomática: primeiramente em Nova Delhi, em 1984, e depois em Mumbai, em 2009 (também servi na China, em 1994). Foram momentos muito distintos entre si, para a própria Índia. Convivi primeiramente com ela nehruviana, “não-alinhada” e fechada economicamente para o mundo, nas décadas de 70/80 do século passado, momento em que éramos, Brasil e Índia, os dois paladinos mundiais da política de reserva de mercado. Já em Mumbai, em 2009, convivi com o universo pujante da sua capital econômica e empresarial. Não só geograficamente, mas “culturalmente”, era como eu vivesse em dois países distintos, ainda que gêmeos univitelinos: em Delhi conheci o poder na sua acepção mais concreta e imperial, e em Mumbai testemunhei a pujança do seu empresariado. Neste espaço de tempo, sobretudo nesta última década, a Índia tornou-se um ator industrial e exportador significativo, mas está longe de se ombrear com a China, maior parceiro comercial para a grande maioria dos países. Só que a República Popular vem enfrentando desafios equivalentes ao seu porte: o envelhecimento da população é um deles, aliás definitório. Na contracorrente, mais de 50% da população da Índia tem menos de 30 anos de idade, com os desafios igualmente decorrentes: acesso à educação, qualificação da mão-de-obra, escassez de habitação, saneamento deficiente, mercado de trabalho, etc. são alguns dos mais evidentes. Mas, a longo prazo, os analistas asseguram que ela estará melhor preparada para os tempos futuros.

Neste contexto,“Make in India” foi a iniciativa lançada formalmente em setembro de 2014 pelo governo do atual Primeiro-Ministro Narendra Modi para incentivar as empresas a desenvolver, fabricar, montar produtos no próprio território, e alavancar os investimentos correspondentes. Esta abordagem visa criar o ambiente necessário para o desenvolvimento de uma infraestrutura moderna e eficiente, que abra espaços igualmente para o capital estrangeiro. Para isto foram selecionados 25 setores-chave da economia. O objetivo é “transformar a Índia num centro global de exportação de design e manufatura”, como especifica o plano, lançando mão da sua enorme vantagem comparativa no setor da tecnologia da informação. O alto empresariado indiano deu apoio entusiástico à iniciativa, elevando a popularidade de Modi aos píncaros. Este projeto não difere, aliás, do que fez o governo de Pequim, com o plano “Made in China 2025” que lançou em maio de 2015, com perfil assemelhado. Foram selecionados, então, dez setores de ponta que colocarão, assegura Pequim, o país na liderança da geoeconomia do século XXI. Ambos ambiciosos?…

O “nó górdio” de tudo isto reside na agenda política. Tanto Narendra Modi quanto Xi Jinping adotaram plataformas muito controvertidas. Modi por seu hinduísmo radical e antagonismo ferrenho à comunidade muçulmana da Índia – 14,2% da população do país, aproximadamente 172,2 milhões de pessoas, segundo o censo de 2011, e terceira maior população islâmica do planeta – o que lhe vem angariando crescentes críticas, tanto dentro quanto fora do país, e Xi pelo viés autocrático com que está conduzindo a China.

Será, então, que estarão preparados para assumir este desafio? Caso positivo, seria apenas um deles, ou um “condomínio asiático”? Qualquer que seja a solução, uma coisa me parece certa: a caravana da História está se dirigindo para o Oriente. E fica a pergunta: nós estamos preparados para conviver com um paradigma que desconhecemos quase que totalmente?

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.