Continuando o exercício de olhar para a Índia, acho importante agora recapitular resumidamente a sua politica para com a vizinhança imediata e as diretrizes que nortearam – e norteiam – as suas relações com o Paquistão.
Se olharmos para o mapa do país veremos que o subcontinente indiano é um território fechado sobre si mesmo: ao norte, a cordilheira dos Himalaias constitui uma barreira natural, e ao sul, o Mar da Arábia, o Oceano Índico e a Baía de Bengala atuam como fronteiras marítimas. Isto tem importância maior que a meramente cartográfica, porque define o caráter único da civilização indiana.
Ainda que isolada pela geografia, a Índia sofreu a influência dos povos que adentraram o seu território ao longo dos milênios e vieram somar-se à população dravídica ancestral. A quase totalidade dessas invasões ocorreu através das planícies férteis do Punjab, na região noroeste que une o seu território ao Paquistão. Entre os primeiros destes povos estavam os arianos indo-europeus, que migraram da Ásia Central e conquistaram a enfraquecida “Civilização do Vale do Indo” (3300 a 1300 AEC). Eles trouxeram consigo os textos sagrados que iriam formatar esta civilização e são o embrião do hinduísmo. De todos, o mais importante, o “Rig Veda”, também chamado de “Livro dos Hinos”, é o documento mais antigo da literatura hindu. Nele está a semente do que seria a definição das “varnas” e castas, que até hoje norteiam as relações interpessoais.
O Islã chegou ao subcontinente no século VII logo após a morte do Profeta Maomé, ainda no início da sua expansão, quando os árabes conquistaram a região do Sindh, no centro-oeste do subcontinente; posteriormente, expandiram-se para o Punjab e o norte da Índia, no século XIII, chegando a Delhi, onde fundaram o Sultanato de Delhi. Desde então, o Islã tornou-se parte da herança religiosa e cultural do império. Sob o sultanato deu-se a síntese da civilização indiana com a islâmica e a integração do subcontinente a um sistema de redes internacionais mais amplas, levado pelos mercadores que cruzavam grande parte da afro-eurásia através das Rotas da Seda. Tal interação teve um impacto muito significativo na cultura e sociedade indianas. Os que visitam Delhi e o norte da Índia notam a herança marcante deixada pelas cultura e estética islâmicas na região.
O apogeu desta civilização ocorreu com a chegada dos Moguls (ou mogóis, segundo alguns autores), quando Babur, descendente direto de Tamerlão, e de Gengis Khan, pelo lado materno, após perder seu trono em Samarcanda, no Uzbequistão, voltou sua atenção para o subcontinente e derrotou Ibrahim Lodi, o último sultão de Delhi, em 1526. O resultante império mogul não interferiu nas sociedades que passou a governar; ao contrário, as equilibrou e pacificou por meio de práticas administrativas inovadoras e inclusivas, dando origem a um governo sistematizado, centralizado e uniforme. Evitando impor a identidade islâmica, os moguls uniram os reinos e feudos locais por meio da lealdade de uma cultura “persianizada” ao imperador. Foi um dos momentos áureos em toda a história da Índia. Algumas destas características permanecem marcantes até hoje em dia, sobretudo no norte do país…
Com o passar do tempo, a dinastia foi-se estiolando. Entrementes, em 31 de dezembro de 1600, a Rainha Elizabeth I, da Inglaterra, autorizou um grupo de comerciantes londrinos a negociar com as chamadas “Índias Orientais”, concedendo-lhes o monopólio do comércio “com todos os países situados a leste do Cabo da Boa Esperança e a oeste do Estreito de Magalhães”. Estava fundada a “Companhia das Índias Orientais”… Em conivência com as elites indianas, sobretudo a realeza, a “East India Company” foi paulatinamente ganhando crescentes espaços. Na segunda metade do século XIX, a administração direta pela coroa britânica e a mudança tecnológica inaugurada pela revolução industrial tiveram o efeito de entrelaçar estreitamente as economias da Índia e da Grã-Bretanha.
Entretanto, as classes intelectuais indianas passaram a resistir com animosidade à exploração da população e das riquezas do país, até que uma revolta, em 1857, nos quartéis de Calcutá envolvendo os chamados “sepaios” – soldados indianos da companhia – ganhou dimensões ameaçadoras, levando a Coroa a dissolver a companhia e assumir o governo: estava formado o “Raj Britânico” e a Rainha Vitória recebeu, em 1877, o título de “Imperatriz das Índias”. O “India Office”, departamento estabelecido em Londres para supervisionar a administração da colônia através de um vice-rei e outros funcionários tornou-se a área mais importante da administração do Império, e a Índia -“the Jewel in the Crown” – a sua joia,
Para resistir aos colonizadores, foi fundado, em 1885, o “Indian National Congress”, partido nacionalista e independentista, que, aliás, dominou por mais de um século a vida política do país. Num crescendo do antagonismo ao “Raj”, foi lançado em agosto de 1942, por inspiração do Mahatma Gandhi, que assumira a liderança da resistência popular, o movimento “Quit India”, exigindo que os britânicos deixassem o país e transferissem o poder político para um governo representativo autóctone. A luta pela independência sobrepôs-se num primeiro momento, graças ao esforço de Gandhi, à divisão político-religiosa entre hindus e muçulmanos. Esta trégua, entretanto, teve pouca duração e coube a Jawarhalal Nehru liderar as falanges hindu e não-islâmica, e a Muhammad Ali Jinnah tornar-se o porta-voz e mentor dos muçulmanos no seio do conflituado “Indian National Congress”: estava configurada a divisão político-religiosa que até hoje acarreta consequências tão funestas para os dois vizinhos. A confrontação culminou no “Ato de Independência da Índia”, de 1947, que acabou com a suserania da Coroa e dividiu o Raj britânico em dois países independentes, o “Domínio da Índia” e o “Domínio do Paquistão”.
Este processo foi um dos mais traumáticos da História devido à forma apressada e atabalhoada com que foi feita a demarcação dos territórios dos países nascentes. A participação do advogado londrino, Sir Cyril Radcliffe, que jamais estivera na Índia, designado pelo Raj para estabelecer as linhas das fronteiras comuns, feita de forma insensível e desconectada das múltiplas realidades no terreno (ele definiu a demarcação dos territórios levando em conta a maioria da população “in loco” – hindu ou muçulmana – sem levar em conta que em todos eles havia minorias do outro credo), foi o estopim de uma das maiores tragédias do século XX, quando milhões de hindus e muçulmanos se deslocaram de seus lares ancestrais para uma nova pátria, e muitos pereceram na chamada “Partição”: jamais se conhecerá o número real de vítimas desta tragédia.
Tudo o que estamos testemunhando na atualidade, sobretudo a radicalização do islamismo em todo o planeta, teve como um dos primeiros berços a confrontação entre muçulmanos separatistas e as autoridades de Delhi na região da Cachemira, cujas fronteiras ainda permanecem insolúveis. Disto tratarei numa próxima postagem.