ISSN 2674-8053

Lições da Segunda Guerra Mundial: mercenários e o pós-guerra

Em 2 de setembro, o mundo se recorda do fim da Segunda Guerra Mundial, um dos conflitos mais devastadores da história humana. Esta data não é apenas uma lembrança das atrocidades e das vidas perdidas, mas também um momento de reflexão sobre as profundas transformações que essa guerra trouxe para o cenário global.

A Segunda Guerra Mundial, que se estendeu de 1939 a 1945, envolveu quase todas as nações do planeta em algum momento. As batalhas ocorreram em diversos continentes, deixando um rastro de destruição, morte e sofrimento. Cidades inteiras foram reduzidas a escombros, e milhões de pessoas perderam suas vidas. Muitos são os legados desta guerra.

Um dos legados mais duradouros da Segunda Guerra foi a criação de instituições internacionais destinadas a promover a paz e a cooperação entre as nações. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada em 1945 com o objetivo principal de prevenir futuros conflitos em escala global. Além disso, instituições financeiras como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional foram estabelecidas para reconstruir economias devastadas e estabilizar o sistema financeiro internacional.

Outro legado, muito menos discutido, mas igualmente significativo, foi a presença e atuação de mercenários durante o conflito. Estes combatentes, muitas vezes motivados por ganhos financeiros ou ideológicos, desempenharam papéis variados na guerra. Mais preocupante, porém, foi o impacto que muitos desses mercenários tiveram em seus países de origem após o fim do conflito.

Os mercenários da Segunda Guerra Mundial eram frequentemente ex-soldados ou combatentes experientes que ofereciam seus serviços a nações ou grupos em troca de pagamento. Alguns eram motivados por ideologias, alinhando-se com as potências do Eixo ou dos Aliados com base em convicções pessoais. Outros eram puramente motivados por ganhos financeiros, lutando para quem pagasse mais.

Sua atuação variava desde funções de combate direto até papéis de treinamento, onde usavam sua experiência para treinar tropas regulares. Em alguns casos, mercenários eram usados em operações especiais ou missões de alto risco, dada sua habilidade e disposição para enfrentar perigos.

Após o fim da guerra, muitos mercenários retornaram aos seus países de origem. No entanto, a reintegração à sociedade civil muitas vezes provou ser desafiadora. Acostumados à violência e, em muitos casos, traumatizados pelos horrores da guerra, alguns encontraram dificuldade em se adaptar à vida pacífica.

Em várias nações, o retorno desses combatentes resultou em um aumento da criminalidade e da violência. Alguns mercenários, incapazes de encontrar emprego ou propósito em uma sociedade em paz, recorreram ao crime organizado, formando ou se juntando a gangues e cartéis. Em outros casos, utilizaram suas habilidades militares em conflitos locais ou golpes de Estado.

Além disso, a presença desses combatentes experientes e muitas vezes desiludidos também teve um impacto político. Em alguns países, ex-mercenários desempenharam papéis significativos em movimentos políticos radicais, tanto de extrema direita quanto de extrema esquerda, contribuindo para a instabilidade política.

Os mercenários no conflito entre Rússia e Ucrânia

Assim como ocorreu na Segunda Guerra Mundial e em muitas guerras que vieram depois desta, a questão do uso de mercenários é uma questão que ultrapassa o próprio conflito.

Os mercenários na guerra Ucrânia-Rússia não são um grupo homogêneo. Alguns são ex-militares que buscam lucro, enquanto outros são motivados por ideologias ou alianças políticas. O Grupo Wagner, por exemplo, é uma organização paramilitar privada de origem russa que tem sido associada a operações na Ucrânia, bem como em outros conflitos ao redor do mundo.

Além de russos, há relatos de mercenários de outras nacionalidades, incluindo brasileiros, que se juntaram ao conflito de ambos os lados, seja apoiando as forças ucranianas ou as separatistas pró-Rússia. A participação de mercenários em conflitos pode ter implicações duradouras. Seu retorno a seus países de origem após o conflito pode trazer desafios de reintegração, especialmente se retornarem com traumas ou sem oportunidades de emprego. Além disso, sua presença pode influenciar a dinâmica do conflito, tornando as negociações de paz mais complexas.

Os governos costumam ter uma participação ativa, ainda que mais indireta, na busca por mercenários. Dentre as principais estratégias utilizadas destacam-se:

  • Remuneração Competitiva: Um dos principais atrativos para muitos mercenários é a compensação financeira. Governos oferecem salários competitivos, bônus e outros incentivos.
  • Benefícios e Proteções: Além da remuneração, alguns governos oferecem benefícios como seguro saúde, proteção legal e até mesmo cidadania ou status de residência.
  • Promoção de Ideologias: Em alguns casos, os governos atraem mercenários promovendo uma causa ou ideologia específica, especialmente se o conflito tiver conotações religiosas ou étnicas.

No caso da atual guerra, percebe-se uma ação real no sentido de promover o ambiente de atração de mercenários. A mídia brasileira tem coberto esta questão, mas ainda de uma forma muito superficial e esporádica, como se pode ver em algumas das matérias publicadas.

  • Ucrânia lança site para facilitar recrutamento de estrangeiros: O governo da Ucrânia lançou um site para facilitar o recrutamento de estrangeiros interessados em combater ao lado das forças ucranianas. Fonte: UOL
  • ‘Luto por dinheiro’: Mercenário que diz ter servido no Haiti vai à Ucrânia: Um brasileiro que afirma ter combatido como mercenário no Sudão e no Haiti decidiu ir à Ucrânia para lutar. Fonte: UOL
  • Mercenário brasileiro vai à guerra da Ucrânia: “Luto por dinheiro”: A matéria aborda a presença de mercenários russos na Ucrânia e menciona a participação de um brasileiro que foi ao país para lutar. Fonte: Diário do Centro do Mundo
  • Brasileiros que foram lutar na Ucrânia são criticados por ‘agirem como blogueirinhos’: A matéria destaca críticas feitas a mercenários brasileiros na Ucrânia, que foram acusados de facilitar ataques das tropas russas. Fonte: Pragmatismo Político
  • Embaixada da Ucrânia no Brasil cobra “reação mais forte” de Bolsonaro: Embora a matéria não aborde diretamente o recrutamento de mercenários, ela menciona a posição da embaixada da Ucrânia no Brasil em relação à postura do governo brasileiro sobre o conflito. Fonte: Brasil de Fato

A participação de brasileiros como mercenários em conflitos estrangeiros pode ter várias implicações para o Brasil:

  • Retorno ao País: Uma vez que esses mercenários retornem ao Brasil, eles podem trazer consigo habilidades de combate avançadas, experiências traumáticas e possivelmente conexões com grupos armados ou organizações criminosas internacionais.
  • Radicalização e Ideologias Extremistas: A exposição a conflitos e ideologias extremistas pode levar a uma radicalização de alguns desses mercenários, que podem, posteriormente, promover ou apoiar tais ideologias no Brasil.
  • Desestabilização Interna: A reintegração de mercenários na sociedade brasileira pode ser desafiadora, levando a possíveis problemas de segurança, aumento da criminalidade e até mesmo a formação de grupos armados no país.

A preocupação com mercenários não é exclusiva do Brasil. Parlamentares alemães e franceses têm expressado preocupações semelhantes em relação aos seus cidadãos que atuam como mercenários. https://www.euractiv.com/section/defence-and-security/news/germany-france-warn-mali-russian-mercenary-deal/

A Alemanha tem uma longa história de preocupação com seus cidadãos que se juntam a conflitos externos. A participação de alemães em grupos extremistas e sua subsequente volta ao país tem sido uma questão de segurança nacional. Parlamentares têm pedido ações mais rigorosas contra aqueles que se juntam a conflitos estrangeiros.

A França, que também viu vários de seus cidadãos se juntarem a conflitos no exterior, tem adotado uma postura crítica em relação aos mercenários. O governo francês tem trabalhado para rastrear, monitorar e, em alguns casos, revogar a cidadania daqueles que se juntam a grupos extremistas ou atuam como mercenários.

Essa dimensão, pouco abordada, da guerra, mostra como ela está muito mais próxima de nós do que imaginamos. É algo que precisa ser mais debatido pela sociedade e que exige medidas por parte do governo. Mais do que se preocupar apenas com quem vai, é preciso também entender como se dá o retorno dos mercenários e seus impactos reais sobre a segurança nacional e a segurança da população brasileira.

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X