ISSN 2674-8053

A Europa desperta: a ameaça de Trump e o renascimento da Defesa europeia

O ex-presidente e virtual candidato à presidência pelo Partido Republicano nas próximas eleições dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma onda de choque política entre os aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em um discurso de campanha, Trump declarou ter advertido o líder de “um importante país europeu” que, caso falhasse no pagamento de suas obrigações financeiras para com a Aliança, ele, na qualidade de presidente dos EUA, recusaria defender o país europeu contra uma potencial invasão russa. Trump inclusive sugeriu que, nesse caso, poderia incentivar a Rússia a “fazer o que bem entendesse”.

Ao mencionar o descumprimento das obrigações financeiras, Trump se refere à diretriz da Aliança, criada em uma reunião de cúpula realizada no País de Gales, em 2014, que estabelece a meta de 2% do PIB para os investimentos de Defesa de cada um dos 31 membros da organização. O acordo de 2014 previa que os países deveriam se esforçar para atingir a meta em dez anos, ou seja, até este ano de 2024. Em 2014, apenas três Estados alcançavam aquele patamar. Em 2023, esse número já havia subido para onze. Jens Stoltenberg, Secretário Geral da OTAN, lamentou as palavras de Trump, afirmando que “qualquer sugestão de que os aliados não se defenderão mutuamente mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e aumenta os riscos para os soldados americanos e europeus”. Disse ainda que, ao que tudo indica, no final deste ano, dezoito países terão atingido a meta de investimento em Defesa.

A ameaça de Trump reverberou ainda mais porque neste final de semana aconteceu a conferência anual de segurança de Munique, reunindo os ministros da defesa da Europa. A repercussão foi parar na capa da revista semanal alemã Der Spiegel, que pergunta se, dada a ameaça de Trump – e a real possibilidade de sua eleição – não estaria na hora dos europeus, especialmente a Alemanha, considerarem desenvolver a sua própria bomba nuclear.

A promessa de assistência recíproca é a pedra angular da Aliança Atlântica. Está fundamentada no famoso artigo 5º, que determina que o ataque a um dos membros da organização “será considerado um ataque contra todos eles” e que, consequentemente, cada um deles tomará “as ações que julgar necessárias, inclusive o uso da força armada para restaurar e manter a segurança do Atlântico Norte”.

Ironicamente, na única vez em que o artigo 5º foi acionado nos 75 anos de existência da Aliança, não o foi por nenhum membro europeu, mas sim pelos EUA, após os ataques de 11 de setembro de 2001. Isso resultou no apoio efetivo da Aliança à guerra ao terror, incluindo às invasões do Iraque e do Afeganistão.

Entretanto, é inegável que Trump trouxe à tona uma realidade preocupante: os europeus se acostumaram a contar com o guarda-chuva dissuasório dos EUA, relegando perigosamente suas próprias capacidades de defesa a um segundo plano. Isso ficou especialmente patente no desabafo do general Alfons Mais, comandante do exército alemão, expressado no Linkedin, no dia em que os russos invadiram a Ucrânia. Disse o general[1]: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra”. “E o Bundeswehr, o exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à aliança são extremamente limitadas.”

As palavras do general Alfons completarão dois anos no dia 24 de fevereiro. A guerra na Europa serviu como um duríssimo aviso e os europeus estão se mobilizando. Na conferência de Munique, várias declarações foram dadas nesse sentido. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a ameaça da Rússia à Europa é real e os países do continente precisam fazer muito mais para garantir a sua própria segurança. O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, afirmou que a Europa deveria parar de reclamar de Trump, e se concentrar em aumentar os investimentos em defesa e “aumentar maciçamente a produção de armas”. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirmou que seu país atingirá a meta este ano, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, embora reconhecendo que isso pode não ser suficiente para a construção das capacidades de defesa necessárias.

A Europa vive um momento crucial em sua história. A crise de segurança no continente, representada pela ameaça russa e a possível escalada da guerra para outros países europeus convive com a perspectiva da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, que pode significar que o maior aliado pode vir a faltar em um momento crítico.

Diante dessa conjuntura, é imperioso que a Europa reavalie sua dependência estratégica dos EUA e invista decisivamente na construção de suas próprias capacidades de defesa. Isso não significa abandonar a OTAN. Pelo contrário, a construção de uma autonomia europeia fortalecerá a Aliança.

Então, é de se esperar que assistamos, já em 2024 e nos próximos anos, a um aumento significativo dos investimentos europeus em Defesa, a um maior desenvolvimento de suas capacidades militares combinadas, ao fortalecimento da cooperação em inteligência e à promoção da indústria de Defesa, com a ampliação da produção de armas e munições, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Tudo isso vai trazer repercussões para os outros continentes, com o provável desencadeamento de uma corrida armamentista, no chamado Dilema de Segurança. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

Paulo Roberto da Silva Gomes Filho
Oficial de cavalaria do Exército, formado na Academia Militar das Agulhas Negras, em 1990. Foi comandante do 11º Regimento de Cavalaria Mecanizado, em Ponta Porã/MS; instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras, da Escola de Aperfeicoamento de Oficiais e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Atualmente serve no Comando de Operações Terrestres - COTER - em Brasília/DF.

Os artigos publicados são de opiniões pessoais. Não fala em nome do Exército. As ideias aqui expressas são fruto da sua experiência profissional e dos estudos que realizou.

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