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Questões espirituais e religiosas na crise de identidade global

A espiritualidade e a religião têm sido, ao longo da história, pilares fundamentais na construção da identidade e do sentido de pertencimento. Para muitas culturas, a relação com o sagrado oferece uma base estável para entender o mundo, a si mesmo e o propósito de vida. No entanto, em uma era marcada pela crise de identidade global, onde tradições são questionadas e o secularismo se expande, a espiritualidade e a religião também passam por uma transformação profunda. Esse fenômeno pode ser observado em diferentes continentes, onde a busca por sentido e conexão adquire novas formas e cria uma tensão entre o antigo e o contemporâneo.

Na África, as práticas espirituais e religiosas têm raízes ancestrais, profundamente conectadas à terra e à comunidade. As religiões africanas tradicionais, como a prática do vodun no Benin e as religiões de matriz bantu, preservam uma relação intensa com os antepassados e o mundo espiritual, oferecendo um senso de identidade coletiva que transcende o tempo. Contudo, essas tradições enfrentam desafios em um mundo onde o cristianismo e o islamismo — influências coloniais e globalizadas — continuam a se expandir. Jovens africanos encontram-se divididos entre as práticas espirituais de seus ancestrais e as religiões globais, que oferecem tanto uma forma de modernidade quanto uma certa ruptura com a herança cultural. Para muitos, as tradições religiosas locais estão sendo reinterpretadas ou incorporadas em práticas mais amplas, criando um caminho espiritual híbrido que tenta conciliar o antigo com o novo.

Na Ásia, a busca espiritual continua a desempenhar um papel central na vida de milhões de pessoas, mas também passa por uma transformação intensa. Na Índia, por exemplo, o hinduísmo sempre esteve enraizado na vida cotidiana, influenciando desde as relações familiares até o modo como o tempo é visto e vivido. No entanto, com a globalização e o contato com outras religiões e filosofias, muitos indianos têm experimentado um hinduísmo reinterpretado, que mescla elementos do yoga e da meditação com influências ocidentais. O budismo, amplamente praticado na Ásia, enfrenta um fenômeno similar. No Japão e na Tailândia, por exemplo, muitos jovens são atraídos por práticas espirituais modernas e alternativas que se afastam do budismo tradicional, como o movimento da “nova era”. Essa combinação de influências cria uma identidade espiritual híbrida, onde a prática religiosa se torna mais individualista e menos centrada na comunidade.

No ocidente, o declínio da religiosidade tradicional abriu espaço para uma busca espiritual alternativa, marcada pela personalização da experiência do sagrado. Muitos abandonaram as religiões estabelecidas, optando por uma espiritualidade que permite maior liberdade e que não está presa a dogmas. Isso é evidente no crescimento de práticas como a meditação, o mindfulness, o tarot e até o xamanismo, que ganham adeptos principalmente entre os jovens. Essa busca por uma conexão espiritual, fora dos padrões convencionais, reflete o desejo de encontrar sentido em um mundo onde a identidade parece fragmentada e a cultura de consumo esvazia o espírito. No entanto, essa espiritualidade personalizada e muitas vezes comercializada traz consigo uma forma de “consumo espiritual” que, por vezes, carece de profundidade e de compromisso com uma comunidade.

Em cada uma dessas regiões, a crise de identidade global se manifesta na forma como a espiritualidade e a religião são vividas. Para muitos, a fé ainda é um elo com o passado e uma âncora de identidade, mas as tradições não permanecem intactas diante do movimento constante do mundo moderno. A busca espiritual se torna, assim, uma resposta tanto ao desejo de preservar as raízes quanto ao de explorar novas formas de sentido. O desafio, entretanto, está em conciliar essa busca com a profundidade que uma prática espiritual autêntica exige, evitando que a espiritualidade se torne uma coleção de fragmentos desconexos.

A crise espiritual e religiosa de nossa era nos convida a refletir sobre o que significa pertencer e a buscar um equilíbrio entre o individual e o coletivo. Em um mundo onde as identidades são constantemente redescobertas, a espiritualidade continua a ser um espaço de resistência, onde muitos buscam um sentido duradouro em meio a um cenário de constante transformação.

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X

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