
Durante muito tempo, a África foi tratada como periferia nas análises internacionais — ora como espaço de intervenção humanitária, ora como fonte de recursos naturais. No entanto, nas duas últimas décadas, o continente deixou de ser apenas receptor de influência externa e tornou-se o novo epicentro das disputas geopolíticas do século XXI. Grandes potências, como China, Estados Unidos, Rússia, Turquia e potências regionais do Golfo, vêm travando uma silenciosa mas intensa disputa por presença, acesso e influência em solo africano. E os motivos são estratégicos: recursos, rotas, votos diplomáticos e projeção de poder.
A primeira razão para essa centralidade é demográfica. A África será, nas próximas décadas, o continente com maior crescimento populacional do planeta. Projeções indicam que, até 2050, um em cada quatro seres humanos viverá na África. Trata-se, portanto, de um gigantesco mercado consumidor em formação, com uma população jovem, urbana e conectada. Para países com economias maduras e envelhecidas, como os da Europa e da Ásia Oriental, garantir acesso preferencial a esse mercado é uma questão de sobrevivência econômica.
A segunda razão é econômica. A África concentra vastas reservas de minerais estratégicos — cobalto, lítio, coltan, ouro, gás natural — essenciais para as indústrias tecnológicas e energéticas do futuro. O Congo, por exemplo, detém cerca de 70% da produção global de cobalto, insumo fundamental para baterias de carros elétricos. Marrocos lidera em reservas de fosfato, enquanto Moçambique e Tanzânia têm crescentes reservas de gás. Quem controlar o acesso a esses recursos terá vantagem na transição energética e no mercado digital global.
A terceira razão é geopolítica. A África possui 54 votos na Assembleia Geral da ONU — quase um terço do total. Em tempos de reconfiguração da ordem global, contar com apoio africano é essencial para legitimar alianças, condenar rivais ou defender reformas institucionais. Não à toa, tanto Rússia quanto China investem em diplomacia, perdão de dívidas, ajuda técnica e cooperação militar com países africanos, buscando respaldo em fóruns internacionais.
A presença chinesa no continente é a mais consolidada. Desde os anos 2000, Pequim tornou-se o principal parceiro comercial da África, ultrapassando os Estados Unidos. Financia estradas, ferrovias, portos, hospitais, universidades e palácios de governo. Promove acordos de commodities em troca de infraestrutura e exporta tecnologia de vigilância urbana e controle digital. Sua abordagem é pragmática: não interfere em questões internas e negocia com qualquer regime.
A Rússia, por sua vez, aposta na cooperação militar. Presente em países como República Centro-Africana, Mali e Sudão, fornece armamentos, treinamento e, em alguns casos, mercenários vinculados ao grupo Wagner. Em troca, obtém acesso a minas, apoio político e contratos de segurança. Moscou apresenta-se como herdeira da solidariedade soviética com as lutas anticoloniais e como contraponto ao “neocolonialismo ocidental”.
Os EUA, diante desse avanço, retomaram esforços para manter relevância. Promovem fóruns de diálogo, programas de saúde e segurança alimentar, além de ações antiterrorismo. No entanto, sua abordagem ainda é vista por muitos governos africanos como moralizante e lenta. Já países como Turquia, Emirados Árabes e Arábia Saudita ampliaram investimentos, abriram bases militares e firmaram acordos comerciais.
A disputa pelo continente se dá também no plano das narrativas. A África não quer mais ser tratada como espaço de caridade ou como ameaça migratória. Exige respeito, investimentos concretos e voz nas decisões globais. O crescente protagonismo da União Africana, a entrada do continente no G20 e a expansão da diplomacia africana refletem essa mudança de postura.
Não se trata de um novo colonialismo clássico. Trata-se de uma disputa por influência num mundo em transformação. A África já não é o quintal de ninguém — é o novo centro de gravidade geopolítica. E quem subestimá-la, perderá não apenas mercado, mas legitimidade.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X