
Introdução: o mundo pós-consenso
Por décadas, a ordem internacional liberal foi sustentada por mais do que tratados, instituições e mercados — ela foi sustentada por uma ideia. A ideia de que certos valores eram universais: a liberdade individual, a democracia representativa, os direitos humanos, o livre mercado, o progresso científico, a razão crítica. Esses valores, profundamente enraizados na tradição ocidental, foram promovidos como referências morais globais, e não apenas como escolhas políticas locais. Sua universalização era vista como natural, desejável e, muitas vezes, inevitável.
No entanto, essa universalidade começou a ser questionada. Ao longo das últimas duas décadas — e com mais intensidade após as crises financeiras, migratórias, sanitárias e climáticas —, diversos países e comunidades passaram a rejeitar o discurso universalista como expressão de dominação cultural e política. O que antes era visto como horizonte civilizatório passou a ser percebido como imposição ideológica. A fala do centro — de Washington, Bruxelas, Londres ou Paris — já não é recebida como neutra ou inspiradora. Ela é filtrada por camadas de desconfiança, ressentimento histórico e reivindicações de autonomia.
Essa rejeição não vem apenas de Estados autoritários ou de elites nacionalistas. Ela surge também de vozes subalternizadas, movimentos sociais, intelectuais do Sul Global e populações marginalizadas dentro do próprio Ocidente. A crítica é clara: não há universalidade sem escuta, e não há fala legítima quando ela parte da exclusão. Os valores da ordem liberal continuam existindo, mas perderam o privilégio da autoridade automática. O mundo entrou, assim, em uma crise de valores — não porque deixou de ter valores, mas porque passou a disputar quais deles devem guiar a vida comum.
Este artigo propõe uma análise dessa crise do discurso universalista. Não se trata de defender ou atacar a ideia de universalidade em si, mas de compreender por que ela perdeu força, em que medida ela foi instrumentalizada e quais são as alternativas que hoje se colocam diante de um mundo plural, conflitivo e interdependente. A pergunta central que nos orienta é: como construir referências éticas e políticas comuns em um mundo que já não aceita a pretensão de um centro moral global?
A promessa universalista
A ideia de valores universais ocupa um lugar central na modernidade ocidental. Desde a Revolução Francesa, com sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, passando pelos ideais iluministas e culminando nas constituições liberais dos séculos XIX e XX, o Ocidente construiu uma narrativa segundo a qual certos princípios — liberdade, igualdade, fraternidade, dignidade humana — seriam aplicáveis a todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Essa convicção, reforçada pelos horrores das guerras mundiais, culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948 como símbolo máximo do novo pacto civilizatório.
No contexto do pós-guerra, esses valores não eram apenas proclamados — eram institucionalizados. A criação de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas, a UNESCO, a OIT, e, posteriormente, tribunais internacionais e convenções sobre meio ambiente, direitos das mulheres e dos povos indígenas refletiam a tentativa de converter princípios abstratos em normas concretas de regulação global. A universalidade, assim, não era só um discurso moral: ela se transformava em prática jurídica, política e diplomática.
A partir da década de 1990, com o fim da Guerra Fria e o colapso do modelo soviético, esse discurso atingiu seu ápice. A vitória da democracia liberal e do capitalismo de mercado foi interpretada por muitos como a confirmação de que os valores ocidentais eram, de fato, universais. A política externa de muitas potências ocidentais — especialmente dos Estados Unidos e da União Europeia — passou a incorporar a promoção da democracia, dos direitos humanos e do livre mercado como parte de sua missão global. Intervenções militares eram justificadas em nome da “responsabilidade de proteger”; sanções econômicas, em nome da defesa dos valores universais; e a cooperação internacional, muitas vezes, condicionada à adoção de reformas institucionais alinhadas a esse modelo.
Esse movimento foi acompanhado por um poderoso aparato simbólico e cultural. Filmes, livros, universidades, fundações e ONGs espalhavam os valores liberais como se fossem verdades autoevidentes. A globalização, nesse sentido, não foi apenas econômica — foi também axiológica: uma difusão de normas, comportamentos e imaginários centrados na figura do indivíduo autônomo, consumidor racional e cidadão de uma ordem regulada por direitos.
A promessa universalista, assim, se apresentava como uma síntese entre moralidade e modernidade. Ao adotar os valores liberais, os povos não apenas se alinhariam ao bem — também se alinhariam ao progresso. O Ocidente não vendia apenas produtos: ele exportava um modo de vida. E, por muito tempo, esse discurso encontrou adesão, ainda que parcial, em diversas regiões do mundo, especialmente entre elites urbanas, tecnocracias e setores beneficiados pela integração global.
Mas o que parecia ser uma convergência progressiva se revelou, com o tempo, uma tensão profunda entre universalismo e particularismo, entre centro e periferia, entre imposição e escuta. A universalidade, proclamada como neutra, começou a ser lida como mascaramento da dominação.
É a essa inflexão que nos voltaremos na próxima seção.
A crítica ao universalismo: entre ressentimento e emancipação
A partir da década de 2000, mas com raízes muito anteriores, uma crítica consistente e multifacetada ao discurso universalista começou a ganhar corpo — tanto no plano intelectual quanto político. Essa crítica não parte de um único lugar; ela emerge simultaneamente em diversos contextos: do Sul Global e de comunidades marginalizadas dentro do Norte Global, de tradições filosóficas não ocidentais, de movimentos sociais, de países pós-coloniais e até mesmo de setores desiludidos com as promessas não cumpridas da modernidade ocidental. O alvo comum dessa crítica é a ideia de que determinados valores — por mais nobres que pareçam — possam ser impostos como normas universais sem levar em conta as histórias, os contextos e as vozes dos outros.
Uma das primeiras camadas dessa crítica é histórica. Muitos dos valores liberais proclamados como universais foram promovidos por Estados que, ao mesmo tempo, mantinham colônias, apoiavam ditaduras e praticavam violência sistemática contra povos subalternizados. A contradição entre discurso e prática tornou-se insustentável. Como pode a liberdade ser universal se foi negada a milhões sob regimes coloniais administrados pelas próprias potências que hoje se dizem guardiãs dos direitos humanos? Como pode a democracia ser apresentada como valor global quando tantos golpes militares foram apoiados em nome da estabilidade geopolítica? Essa crítica não é apenas moral — ela é memorial: exige que se reconheça a dívida histórica do universalismo com a dominação imperial.
Outra camada é epistemológica. O discurso universalista parte de uma ideia de razão e de humanidade que se pretende neutra — mas que, como mostram pensadores pós-coloniais e decoloniais, carrega o peso de um sujeito específico: o homem branco, europeu, burguês, laico, masculino, heterossexual. O que se apresenta como “humano em geral” é, muitas vezes, uma abstração construída a partir da experiência de um grupo particular, que depois se universaliza como medida de todas as outras experiências. A crítica, nesse caso, não é à ideia de direitos ou de liberdade, mas à forma como essas categorias foram concebidas, historicamente, excluindo corpos, saberes e cosmologias outras.
Há ainda uma crítica política, que se tornou mais visível com a multiplicação de intervenções militares e sanções em nome da democracia e dos direitos humanos. Diversos países passaram a perceber a retórica universalista como instrumento de coerção, usado seletivamente para punir adversários e proteger aliados. A intervenção na Líbia, o colapso do Iraque, as sanções contra países do Sul Global e o silêncio diante de abusos cometidos por aliados ocidentais tornaram evidente que o universalismo frequentemente opera por interesses geopolíticos, mais do que por princípios estáveis. A universalidade se torna, assim, um jogo de poder — e não uma ética comum.
Essas críticas não partem, necessariamente, de uma rejeição ao ideal de valores partilhados. Em muitos casos, o que se reivindica é justamente uma verdadeira universalidade, construída de forma plural, dialógica e horizontal. Os movimentos indígenas, feministas, negros, periféricos e do Sul Global não estão pedindo o fim dos direitos — estão pedindo que esses direitos sejam reformulados a partir de suas experiências e saberes. O que está em jogo, portanto, não é o valor da liberdade ou da dignidade, mas o lugar a partir do qual esses valores são enunciados.
Por isso, a crítica ao universalismo precisa ser compreendida não como uma rejeição cínica ao diálogo global, mas como uma exigência radical de escuta, de reconhecimento e de coautoria. Ela oscila entre o ressentimento legítimo de quem foi excluído e a emancipação de quem deseja reconstruir, com autonomia, os termos da convivência global.
Mas se os valores universais perderam a força de consenso — o que os substitui? E como evitar que a crítica ao universalismo se transforme em relativismo absoluto, incapaz de construir pontes éticas e políticas em um mundo interdependente? É a essas questões que nos voltaremos na próxima seção.
Pluralismo ou relativismo: o dilema da convivência ética
A crítica ao universalismo coloca o mundo diante de um dilema central: como conciliar a pluralidade legítima de culturas, cosmovisões e sistemas de valores com a necessidade de normas mínimas comuns que sustentem a convivência global? Trata-se de uma tensão profunda entre o reconhecimento da diferença e a construção de um chão ético compartilhado. Se levada ao extremo, a recusa do universalismo pode desembocar em relativismo radical — um cenário em que nenhum valor é comum, nenhum princípio é negociável, e toda crítica é vista como imposição cultural. Mas, se ignorada, essa recusa pode fazer com que se perpetue uma universalidade abstrata, surda à diversidade real dos povos.
Nesse contexto, a noção de pluralismo ético aparece como alternativa possível. Ao contrário do relativismo, o pluralismo não afirma que todos os valores são equivalentes e inconciliáveis, mas que as sociedades têm diferentes formas legítimas de buscar sentido, dignidade, justiça e bem comum. O pluralismo parte do reconhecimento de que não existe uma única via civilizatória, nem um único modelo de racionalidade, mas propõe que, mesmo com diferenças, é possível construir consensos parciais, baseados no diálogo, na escuta e na reciprocidade.
O desafio do pluralismo está justamente em identificar quais princípios são de fato compartilháveis, e como eles podem ser formulados sem recorrer a uma linguagem colonizadora. Por exemplo, o repúdio à tortura, ao genocídio ou à escravidão pode ser afirmado em diversas culturas, ainda que com fundamentos morais distintos. Da mesma forma, a proteção à infância, a preservação da vida, o cuidado com os idosos ou o respeito à natureza podem ser pontos de convergência entre tradições que não compartilham a mesma ontologia ou sistema jurídico.
O pluralismo, nesse sentido, exige trabalho político e cultural constante. Ele não repousa sobre verdades autoevidentes, mas sobre a disposição de construir pontes frágeis, revisáveis, entre mundos distintos. Ele exige, também, reconhecimento mútuo: o Ocidente precisa aceitar que seus valores não são universais por definição, e os demais precisam estar dispostos a formular contribuições para o espaço ético global que vão além da resistência ou da rejeição. A universalidade, nesse modelo, não é um ponto de partida, mas um horizonte a ser construído coletivamente.
O risco, claro, é que o pluralismo se torne impotente diante de práticas que, em nome da cultura ou da soberania, violem princípios básicos de dignidade humana. É aqui que o debate se intensifica. Como defender a autodeterminação dos povos sem fechar os olhos para regimes autoritários, discriminações estruturais ou violações de direitos? Como sustentar o diálogo entre culturas quando uma delas reivindica o direito de silenciar, excluir ou oprimir? O pluralismo, para não se transformar em complacência, precisa ser vigilante, criterioso e comprometido com a justiça.
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que o relativismo absoluto também serve, muitas vezes, como instrumento de dominação disfarçada. Ao afirmar que “tudo depende da cultura”, corre-se o risco de legitimar desigualdades, violências e autoritarismos sob o manto da identidade. A crítica ao universalismo não pode ser usada como escudo para impedir a crítica interna, o dissenso e a transformação. Afinal, nenhuma cultura é homogênea — e muitas das vozes mais corajosas em defesa da liberdade e da justiça vêm de dentro dos próprios contextos que supostamente seriam “incompreensíveis” ao olhar externo.
Portanto, o verdadeiro dilema da convivência ética global não está em escolher entre universalismo e relativismo, mas em encontrar formas plurais de construir normas comuns — reconhecendo as diferenças, sem sacrificar a possibilidade de solidariedade. É esse desafio que marca o horizonte de uma nova política global, que não pode mais falar a partir de um centro, mas precisa aprender a falar entre mundos.
Conclusão: o futuro do comum em um mundo pós-universalista
Vivemos hoje não o fim dos valores, mas o fim da ilusão de que os valores de um só mundo possam falar por todos. A crise do discurso universalista não é uma regressão ao irracionalismo ou ao tribalismo — é um ponto de inflexão. Ela indica que o planeta, cada vez mais interdependente, já não pode ser organizado a partir de uma única gramática moral. A universalidade automática ruiu, mas a necessidade de princípios comuns nunca foi tão urgente.
Diante de desafios globais como o colapso ambiental, as pandemias, as migrações forçadas, a desigualdade sistêmica e a revolução tecnológica, torna-se evidente que nenhum país, civilização ou tradição poderá enfrentar sozinho as ameaças do nosso tempo. A crítica ao universalismo ocidental só poderá se converter em potência transformadora se for acompanhada da construção de novos horizontes compartilháveis — não impostos, mas negociados; não homogêneos, mas sólidos o suficiente para sustentar pactos de convivência.
Nesse cenário, o que está em jogo não é simplesmente a substituição de um sistema de valores por outro. O que se busca é uma nova forma de enunciar o comum, que não parta da exclusão, da abstração ou da superioridade moral, mas da escuta, da tradução e do reconhecimento mútuo. Um comum não universalista, mas pluriversal — como propõem pensadores decoloniais —, em que a diversidade das experiências humanas seja a base para a elaboração conjunta de princípios éticos e políticos globais.
Esse esforço exige, também, uma reforma profunda das instituições internacionais, que ainda operam com base na ideia de que o Ocidente é o centro da racionalidade e do progresso. Um novo horizonte comum exigirá não apenas vozes novas à mesa — exigirá novas mesas, novos vocabulários, novos modos de produzir legitimidade. Exigirá o reconhecimento de que, para que os valores tenham autoridade, precisam ser construídos com todos os sujeitos do mundo, e não apenas aplicados a eles.
O discurso universalista foi, durante muito tempo, uma linguagem de emancipação. Mas, ao se tornar dogma, perdeu sua força libertadora. O desafio, agora, é reconectar os valores à vida concreta dos povos — com humildade histórica, sensibilidade cultural e coragem política. A reconstrução de um comum global dependerá da nossa capacidade de fazer da pluralidade uma potência, e não um obstáculo; de fazer do desacordo um convite ao diálogo, e não uma sentença de ruptura.
Se o universalismo ruiu, talvez seja porque tentou falar sozinho. O futuro — se houver um — terá que ser dito em coro.
Apresentação da série
A presente série de artigos busca compreender o colapso da ordem internacional liberal a partir de uma perspectiva crítica, histórica e multidimensional. Ao invés de se limitar à análise pontual de eventos contemporâneos, os textos propõem uma leitura estrutural dos processos que levaram à crise do multilateralismo, à ascensão de lideranças populistas e à emergência de novas configurações de poder global. Através de seis ensaios interligados, abordam-se as principais fraturas que desestabilizam o modelo liberal: a perda de legitimidade das instituições internacionais, as contradições internas das democracias liberais, o retorno do nacionalismo e da desglobalização, a disputa por hegemonia entre potências emergentes, a crise do discurso universalista e, por fim, a figura de Donald Trump como expressão simbólica desse esgotamento histórico. O conjunto dos textos fornece um panorama abrangente dos desafios contemporâneos à ordem internacional, contribuindo para um debate mais profundo sobre os rumos possíveis da política global no século XXI.
Títulos dos artigos da série
- A crise das instituições multilaterais: erosão da confiança e perda de legitimidade
- As contradições internas das democracias liberais: quando a promessa vira ressentimento
- A desglobalização e o retorno do nacionalismo: o fim da era da abertura?
- A disputa por hegemonia e a emergência de ordens alternativas: o mundo já não é unipolar
- A crise de valores e do discurso universalista: quando o mundo rejeita a fala do centro
- Donald Trump como sintoma: o desmonte da ordem liberal e a reconfiguração do poder global
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X