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A identidade em guerra no coração da Ucrânia e da Rússia

A guerra da Ucrânia não pode ser compreendida como uma simples disputa por território, mas como uma profunda crise identitária que revela divisões internas tanto na Ucrânia quanto na Rússia. Desde muito antes da invasão russa em 2022, o país já enfrentava uma guerra civil não declarada entre regiões que se orientam em direção ao Ocidente e outras que mantêm laços profundos com Moscou. Essa clivagem interna, somada ao temor do Kremlin de perder sua influência sobre populações russófonas, explica em grande medida a lógica da intervenção russa — e, mais ainda, revela como a própria unidade do Estado russo está em jogo.

Entre 2014 e 2022, a Ucrânia foi palco de um conflito armado no leste do país, centrado nas regiões de Donetsk e Lugansk, conhecido como a guerra do Donbass. O início dessa guerra civil se deu logo após os eventos do Euromaidan, que resultaram na queda do presidente Viktor Yanukovych, pró-Rússia, e na subsequente guinada do governo ucraniano em direção à União Europeia e à OTAN. Sentindo-se excluídas política e culturalmente, populações das regiões orientais, majoritariamente russófonas, iniciaram um movimento separatista apoiado política e militarmente por Moscou. A Rússia, por sua vez, anexou a Crimeia em 2014, movimento que consolidou o caráter identitário do conflito e agravou a fragmentação interna da Ucrânia.

Esse episódio prolongado de guerra civil é mais do que um pano de fundo histórico. Ele é parte central do conflito atual. A negação oficial de que havia uma guerra civil em curso — tanto por Kiev quanto por seus aliados ocidentais — serviu para moldar uma narrativa de integridade territorial ameaçada exclusivamente por forças externas. No entanto, a presença de um sentimento de identidade russa forte em regiões do leste da Ucrânia revela que havia, de fato, um conflito de pertencimento. Muitas dessas populações não apenas rejeitavam o novo governo de Kiev como se sentiam traídas por um Estado que ignorava sua língua, sua cultura e sua história compartilhada com Moscou.

Essa percepção de abandono teve implicações diretas sobre a política do Kremlin. A Rússia interpretou a guerra civil na Ucrânia como um alerta: se populações russófonas puderem ser marginalizadas ou eliminadas política e culturalmente em um país vizinho, o mesmo poderia acontecer dentro da própria Federação Russa. Moscou teme que outras regiões multiétnicas — como o Daguestão, a Chechênia ou o Tartaristão — possam ser encorajadas a seguir caminhos de separação caso o centro falhe em manter a lealdade de suas periferias culturais e linguísticas. Defender os russos do Donbass, portanto, tornou-se uma extensão da defesa da própria coesão nacional russa.

A guerra civil ucraniana de 2014 a 2022 consolidou uma imagem simbólica poderosa: a de que Moscou é a única protetora das populações russófonas no espaço pós-soviético. Não intervir seria um sinal de fraqueza não apenas frente ao Ocidente, mas também frente aos próprios cidadãos russos. A política de “proteção dos compatriotas” — presente em discursos oficiais e na doutrina de política externa russa desde os anos 1990 — ganhou força renovada com a percepção de que o abandono das comunidades do Donbass poderia desencadear efeitos centrífugos perigosos dentro das fronteiras da Federação.

Além disso, o prolongamento da guerra civil sem resolução definitiva gerou um ambiente de instabilidade crônica que facilitou a justificativa para a invasão de 2022. Moscou passou a alegar que o governo ucraniano ignorava os Acordos de Minsk e que havia necessidade de uma “operação especial” para proteger os civis do Donbass de supostos crimes de guerra. Se essas alegações são controversas, o que não se pode negar é que foram eficazes para consolidar apoio interno e justificar a guerra como uma ação de defesa identitária, e não como um mero expansionismo geopolítico.

Portanto, o conflito atual não é o início de uma guerra, mas a continuidade de um processo de ruptura identitária que começou em 2014. A guerra civil que se seguiu à queda de Yanukovych cristalizou a divisão da Ucrânia em dois projetos nacionais opostos: um voltado para a integração europeia, outro para a reintegração com a esfera cultural russa. Ignorar essa guerra interna é também ignorar as motivações mais profundas da Rússia e a gravidade do desafio identitário que ameaça a estabilidade não apenas da Ucrânia, mas da própria Rússia.

A defesa das populações pró-Rússia no leste ucraniano, nesse sentido, torna-se um símbolo da integridade da Federação Russa. Ao mostrar disposição de proteger sua diáspora, Moscou tenta consolidar internamente a ideia de um Estado forte, defensor de sua cultura e de seus povos, dentro e fora de suas fronteiras. A crise ucraniana, longe de ser uma exceção, é um espelho de tensões latentes que atravessam todo o espaço pós-soviético. O campo de batalha não é apenas o território ucraniano, mas o próprio conceito de identidade russa em tempos de globalização e de reconfiguração geopolítica.

Esse artigo faz parte da coletânea de artigos sobre a Rússia