
A confiança entre os Estados Unidos e seus aliados europeus vive uma das fases mais críticas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O vínculo histórico que sustentou a chamada aliança transatlântica — composta por laços políticos, militares e econômicos — vem sendo corroído por episódios de desconfiança mútua, decisões unilaterais e divergências estratégicas. A Europa já não acredita que os EUA sejam um parceiro previsível e confiável. E os Estados Unidos, por sua vez, questionam o comprometimento europeu com os valores e interesses compartilhados. O resultado é um distanciamento crescente entre os dois lados do Atlântico.
Um dos sinais mais visíveis da quebra de confiança está na condução da guerra na Ucrânia. Desde o início do conflito, os Estados Unidos adotaram uma postura assertiva, munindo Kiev com bilhões de dólares em armamentos e assistência. No entanto, os europeus têm se sentido cada vez mais marginalizados nas negociações diplomáticas. Washington decidiu por diversas vezes manter diálogos diretos com Moscou sem consultar previamente seus parceiros europeus. O próprio governo ucraniano já se queixou da falta de transparência em reuniões que definem o futuro da guerra no continente europeu, mas são conduzidas longe de Bruxelas ou Berlim. A exclusão da Europa das principais mesas de negociação enfraquece sua posição e alimenta a sensação de que, para os EUA, os aliados europeus são secundários em questões de segurança global.
A postura norte-americana tem sido moldada por uma lógica transacional, especialmente desde a ascensão de Donald Trump à Casa Branca. Embora sua presidência tenha terminado em 2021, o impacto de sua retórica e estilo político ainda ecoa. A política do “America First” que marcou sua administração deixou cicatrizes profundas na relação com a Europa. Tarifas unilaterais sobre produtos europeus, ataques verbais à OTAN, e o descrédito a acordos multilaterais deixaram líderes europeus em alerta. Com o retorno de Trump ao poder em 2025, as tensões voltaram com ainda mais força. Em reuniões recentes, o presidente norte-americano exigiu que os países europeus aumentassem seus gastos militares e deixassem de depender da proteção dos EUA, sob ameaça de descompromisso norte-americano com a aliança atlântica.
A Alemanha, principal potência econômica da União Europeia, tem sido uma das mais vocalmente desconfiadas. Pesquisas recentes mostram que apenas 16% da população alemã considera os EUA um parceiro confiável. É um índice alarmante para países que, durante décadas, mantiveram uma relação de cooperação quase incondicional. O governo alemão também tem demonstrado resistência a se alinhar automaticamente às posições de Washington, como no caso das sanções ao Irã ou da resposta à escalada do conflito no Oriente Médio. O Reino Unido, tradicionalmente o mais fiel aliado dos EUA no continente, também começa a dar sinais de fadiga. A noção de “relação especial” entre Londres e Washington, celebrada desde os tempos da Segunda Guerra, já não tem o mesmo peso no debate público britânico, com 40% da população questionando seu valor atual.
O desconforto europeu também se manifesta em questões econômicas e tecnológicas. O pacote de subsídios aprovado pelo governo norte-americano para impulsionar sua indústria de chips e energia limpa foi recebido com preocupação por parte da União Europeia, que viu nele um movimento protecionista disfarçado. Países como França e Itália acusaram os EUA de criar distorções no comércio internacional ao atrair empresas europeias com incentivos fiscais bilionários. Em resposta, Bruxelas anunciou seu próprio programa de incentivo industrial, tentando reduzir a dependência dos EUA em áreas estratégicas.
Em paralelo, os Estados Unidos têm cobrado mais compromisso dos europeus com a contenção da China. Mas muitos países do continente resistem em adotar uma postura abertamente hostil a Pequim. Alemanha, França e Espanha, por exemplo, mantêm relações comerciais profundas com o gigante asiático e temem as consequências de uma ruptura. Para os europeus, a rivalidade geopolítica entre Washington e Pequim não deve arrastar a Europa para uma nova guerra fria. Essa diferença de abordagem amplia a desconfiança de Washington sobre a disposição europeia de apoiar a estratégia americana no Indo-Pacífico.
Outro ponto sensível está na própria estrutura da OTAN. Os EUA continuam sendo o principal financiador da aliança, enquanto países europeus, com poucas exceções, não atingem a meta de 2% do PIB em gastos com defesa. O tema voltou ao centro do debate com os alertas de Trump de que os EUA “não socorrerão aliados inadimplentes” em caso de ataque. A ameaça implícita de abandonar a defesa mútua mina um dos pilares fundadores da OTAN e gera instabilidade nos cálculos estratégicos europeus.
A percepção de humilhação pública também contribui para o afastamento. Nos últimos meses, diversas decisões de Washington foram interpretadas na Europa como imposições unilaterais. A exigência de compras bilaterais de armamentos, a exclusão de empresas europeias em contratos tecnológicos e a pressão por uma postura mais alinhada na Ásia reforçam a ideia de que os EUA não tratam seus aliados como parceiros, mas como subordinados. Artigos na imprensa europeia descrevem o verão de 2025 como “a estação da humilhação” de Bruxelas diante de Washington.
A consequência mais imediata desse cenário é a intensificação dos debates sobre autonomia estratégica na Europa. Líderes como Emmanuel Macron voltaram a defender uma política externa independente, com investimentos próprios em defesa, tecnologia e energia. O discurso pela “Europa soberana” ganha força, mesmo entre países tradicionalmente alinhados aos EUA. O desafio é enorme, já que décadas de dependência deixaram lacunas significativas na capacidade operacional europeia. Ainda assim, a busca por alternativas ao guarda-chuva americano tornou-se prioridade.
O cenário atual marca um ponto de inflexão na relação entre Estados Unidos e Europa. Não se trata apenas de desentendimentos pontuais, mas de uma quebra estrutural de confiança. A aliança transatlântica, construída sobre valores comuns e interesses compartilhados, está sendo desafiada por uma nova realidade geopolítica, na qual cada lado parece mais disposto a seguir seu próprio caminho. As consequências desse distanciamento podem redesenhar o equilíbrio de poder global nas próximas décadas.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
