
Em meio ao colapso da confiança nas instituições e à ascensão da alienação individual, emergem líderes que não oferecem caminhos, mas pertença emocional — e isso se transforma em poder. Não se trata apenas de Donald Trump: no mundo todo, de direita ou de esquerda, líderes populistas exploram necessidades profundas de identidade, vingança e ordem, criando seguidores tão fundidos ao líder que qualquer crítica é um ataque pessoal.
Esse fenômeno político é explicado por um arco psicológico que se repete em contextos diversos. Primeiro, esses líderes vendem identidade, não política. Eles personificam o ódio ao sistema e canalizam ressentimentos — não com programas, mas com performatividade. Em segundo lugar, oferecem vingança, não soluções: culpam imigrantes, elites, imprensa ou minorias, e provocam satisfação emocional ao prometer combate, mesmo sem cumprir promessas reais.
A falência das instituições — juízes, imprensa, eleições, educação — abre espaço para o salvador forte: o “homem duro” que cria a crise e se apresenta como seu solucionador exclusivo. Ao operar uma bolha informativa — com canais de mídia aliados, redes sociais e ecossistemas próprios — criam-se verdades alternativas que impedem qualquer informação externa de penetrar. Por fim, muitos seguidores, ao se perceberem enganados ou perturbados, duplicam sua lealdade por vergonha, medo de perder status ou comunidade.
E ainda há a “cura” emocional: esses líderes dizem a seus seguidores que não está a si que atacam, mas aos seus. Essa sensação de ser visto e valorizado — mesmo por meio de manipulação — é poderosa em sociedades marcadas por isolamento e desigualdade. Assim, o líder-culto se torna réstia de significado e pertencimento.
Essa dinâmica se repete globalmente
Na Ásia, Narendra Modi, da Índia, utiliza narrativas similares: apela a grupos majoritários, demoniza muçulmanos e cria uma identidade nacionalista, alimentando uma base profundamente fundida ao líder por meio de emoções, retórica e meios de comunicação alinhados.
No Leste Europeu, Viktor Orbán, da Hungria, tem construído uma aura de salvador cristão conservador. Controla setores do sistema judiciário, restringe independências e opera via narrativa de “nação ameaçada”, mobilizando seguidores por meio de medo e pertencimento.
Na América Latina, tanto Jair Bolsonaro, no Brasil, quanto Andrés Manuel López Obrador, no México, mostram traços semelhantes, embora com nuances ideológicas inversas. Bolsonaro apostou em identidade rural, cristã e anti-sistema; Obrador, no México, mobiliza discurso de nova moralidade, anti-corrupção e enraizamento popular, criando também um vínculo emocional com o eleitor. Em ambos os casos, a política se torna performativa, o debate racional cede espaço à identidade e ao pertencimento.
Na África, figuras como Paul Kagame, em Ruanda, após genocídio, criaram imagem de líder que assegura reconciliação e ordem, mesmo que isso signifique eclipsar a dissidência em nome da identidade nacional e estabilidade. A mistura de trauma coletivo, narrativa de salvação e culto à figura presidencial é poderosa.
Esses processos globais se fundam em mecanismos psicológicos bem estudados:
- Fusão de identidade (identity fusion), pesquisada por Swann e colaboradores, mostra como pessoas passam a sentir que o líder ou grupo é parte delas próprias — o que leva a comportamentos extremos — e não apenas políticos .
- O populismo, seja à direita ou à esquerda, mobiliza ressentimento, identidade coletiva e a sensação de “nós contra os outros”, explorando simplificações, certezas épistemológicas e coletivismo autocrático .
- Pesquisadores também identificaram que identidade populista – oposição a elites e ênfase no “povão puro” – funcionam como gatilhos de mobilização política em países europeus, revelando elementos transnacionais dessa lógica .
- Culto à personalidade tem raízes históricas profundas e metodologias de massa — mídia, propaganda, rituais — e aparece com frequência em regimes autoritários ou híbridos .
- A psicologia da narcisismo coletivo explica como grupos defendem uma autoimagem exagerada, até com hostilidade a outgroups, alimentando lógica de perseguição que o líder reforça .
- Por fim, a teoria social de Tajfel (in-group vs out-group) revela que as pessoas podem sentir satisfação com o dano sofrido por outros grupos — uma base emocional por trás do ressentimento populista .
Em todos esses contextos, quando o sistema democrático falha em oferecer sentido, comunidade e justiça, surgem esses líderes-culto. E não há solução apenas com fatos ou políticas. Por isso, recuperar as pessoas — sobretudo as que estão na fronteira da dúvida — exige oferecer algo que o líder nunca dará: comunidade inclusiva, cuidado real, respeito à dignidade e soluções efetivas.
A batalha não é apenas política. É romper o feitiço emocional que conecta indivíduos isolados a líderes carismáticos, e reconstruir uma política que devolva pertencimento sem dependência, solidariedade sem exclusão, e futuro com esperança.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
