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O fim da globalização como a conhecemos

O modelo de globalização que dominou as últimas décadas, baseado na liberalização comercial, na mobilidade irrestrita de capitais e na primazia das cadeias globais de valor, dá sinais de exaustão. O que se observa atualmente não é o colapso da globalização em si, mas uma metamorfose silenciosa e estrutural. Guerras comerciais, rearranjos regionais e disputas pelo controle de tecnologias estratégicas configuram um novo ciclo de fragmentação econômica, no qual as prioridades nacionais e os interesses geopolíticos se impõem sobre a lógica da integração irrestrita. A ordem econômica mundial que emergiu de Bretton Woods está sendo desmontada em favor de uma configuração mais dispersa, volátil e competitiva.

O sistema internacional instituído após a Segunda Guerra Mundial, com instituições como FMI, Banco Mundial e GATT (depois OMC), apostava numa integração progressiva das economias nacionais sob a liderança dos Estados Unidos. Esse modelo foi fortalecido com a financeirização global a partir dos anos 1980 e a ascensão da China como fábrica do mundo no início do século XXI. Durante décadas, o livre comércio, as cadeias globais de produção e o fluxo transfronteiriço de capitais foram tratados como dogmas inquestionáveis, mesmo diante de suas contradições sociais e ambientais.

Hoje, esse paradigma é tensionado por múltiplas direções. A primeira ruptura evidente se deu nas cadeias produtivas. A pandemia de covid-19 revelou a fragilidade da interdependência global, com a escassez de insumos estratégicos e gargalos logísticos expondo a vulnerabilidade das economias hiperconectadas. Em resposta, governos passaram a adotar políticas de “reshoring”, “nearshoring” e “friend-shoring” — termos técnicos para descrever o retorno da produção a territórios nacionais ou aliados políticos. Essa tendência, longe de ser episódica, se consolida como parte de uma nova estratégia industrial que privilegia segurança e autonomia em detrimento da eficiência globalizada.

A disputa tecnológica entre China e Estados Unidos tornou-se o símbolo mais visível dessa mudança de era. O controle sobre semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações e big data tornou-se questão de segurança nacional. A imposição de sanções a empresas chinesas como Huawei e a proibição de exportação de chips avançados são apenas a face mais explícita de uma guerra tecnológica que envolve patentes, normatização internacional e soberania digital. Em resposta, a China intensifica seus investimentos em tecnologia autônoma e expande seu projeto de “sistemas operacionais nacionais”, enquanto outros países, como Índia e Rússia, desenvolvem plataformas digitais próprias com forte controle estatal.

O comércio internacional, antes regido por regras multilaterais da OMC, vem sendo substituído por acordos bilaterais ou regionais que refletem interesses estratégicos. Blocos como o RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente), liderado pela China, e o USMCA (acordo entre EUA, México e Canadá) exemplificam essa lógica. O mesmo se observa na União Europeia, que busca consolidar sua autonomia estratégica por meio de regulamentações extraterritoriais, como o ajuste de carbono na fronteira e as regras de proteção de dados. Essas dinâmicas sinalizam o enfraquecimento da governança global liberal em favor de zonas de influência econômicas e tecnológicas mais restritas.

O Sul Global também responde à fragmentação com movimentos próprios. Países africanos vêm aprofundando sua integração via Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA), com foco em industrialização e fortalecimento de cadeias regionais. Na América Latina, ainda que de forma desigual, há tentativas de retomar mecanismos de cooperação regional como a Celac. A Índia, por sua vez, aposta em um modelo híbrido: participa de iniciativas multilaterais enquanto promove protecionismo seletivo em setores estratégicos, como tecnologia e defesa.

Outro vetor da nova globalização fragmentada é o protecionismo digital. A regulação da internet e dos fluxos de dados tornou-se ferramenta geopolítica. A chamada “soberania digital” é reivindicada tanto por democracias como por regimes autoritários, refletindo a percepção de que o ciberespaço é também um campo de poder. A União Europeia lidera com sua política de governança digital baseada em direitos, enquanto países como Turquia e Vietnã utilizam o argumento da segurança cibernética para justificar controle sobre plataformas e dados. Em contextos distintos, o que se impõe é a nacionalização crescente da infraestrutura digital.

Esse novo cenário é marcado por uma ambiguidade estrutural. A interdependência global não desapareceu — o comércio internacional ainda cresce, o capital continua circulando e a internet permanece como espaço transnacional. No entanto, as formas de regulação e articulação dessas interdependências mudaram. Os fluxos agora são moldados por rivalidades, nacionalismos econômicos e estratégias defensivas. O mercado deixou de ser um campo neutro para se tornar uma extensão da política de poder.

O fim da globalização como a conhecemos não significa o retorno ao isolacionismo, mas o surgimento de uma ordem multipolar, na qual a integração econômica não se dá por consenso técnico, mas por disputas geoestratégicas. A economia mundial entra numa fase de blocos, proteções e hierarquias renovadas, na qual a eficiência cede lugar à segurança, e a liberalização cede espaço à seletividade. Nesse contexto, a compreensão da globalização como pacto universal perde força, abrindo caminho para novas formas de articulação que refletem os interesses, medos e prioridades de um mundo em reconfiguração.