
A ascensão da China nas últimas quatro décadas é, sem dúvida, um dos maiores fenômenos econômicos e geopolíticos da história contemporânea. Um país que, em 1980, era majoritariamente rural, pobre e isolado, transformou-se em superpotência industrial, tecnológica e diplomática. No entanto, por trás do êxito impressionante, emergem fragilidades estruturais que colocam em xeque a sustentabilidade de seu modelo. A China é hoje um império moderno — mas também um império de riscos, tensões e contradições internas que desafiam suas ambições globais.
Um dos principais gargalos é demográfico. Após décadas de política do filho único, o país enfrenta hoje uma taxa de natalidade em queda acelerada, uma população envelhecida e um crescimento populacional negativo. A China envelhece antes de enriquecer completamente. Isso compromete não apenas o mercado de trabalho — que já começou a se contrair — como pressiona os sistemas previdenciário e de saúde, além de reduzir a vitalidade do consumo interno. O futuro da potência industrial corre o risco de colidir com a escassez de jovens.
Outro fator de instabilidade é a bolha imobiliária. Durante anos, o setor de construção foi motor do crescimento chinês, com cidades inteiras erguidas em ritmo frenético. Esse modelo, baseado em endividamento e especulação, gerou sobreoferta, cidades fantasmas e colapsos como o do grupo Evergrande. Com a desaceleração do setor, governos locais, que dependem da venda de terrenos para financiar seus orçamentos, passaram a enfrentar crises fiscais. A interdependência entre imóveis, crédito e governos provinciais tornou-se uma bomba-relógio difícil de desarmar.
O crescimento da desigualdade também representa um risco. Apesar da retórica de “prosperidade comum”, a diferença entre os ricos das grandes cidades e os pobres do interior se acentuou. Bilionários do setor tecnológico surgiram ao lado de trabalhadores precarizados, migrantes internos sem acesso a serviços públicos e regiões que ficaram para trás. O controle rígido do discurso impede que essas tensões se expressem politicamente, mas não as elimina. Pelo contrário: a ausência de canais de mediação institucional tende a acumular frustrações silenciosas.
Há ainda o desafio do controle social. O aparato de vigilância, que garante estabilidade, também reprime liberdades, bloqueia inovação cultural e pode provocar alienação política. A juventude chinesa, embora submetida à censura, começa a expressar ceticismo nas redes sociais locais, com movimentos sutis de desencanto e desilusão. A repressão em Hong Kong e a política contra uigures em Xinjiang atraem críticas internacionais e aumentam o isolamento diplomático.
Externamente, o avanço chinês enfrenta resistência crescente. A tentativa de conquistar influência no Sul Global gera reações nacionalistas em alguns países, preocupados com dependência econômica. Os EUA, por sua vez, passaram a liderar uma campanha global de contenção tecnológica, bloqueando semicondutores, impondo sanções e restringindo o acesso chinês a inovação de ponta. A União Europeia, que antes via a China como parceiro, hoje a trata como “rival sistêmico”. A pressão para que países escolham entre Washington e Pequim acirra as divisões globais.
A autonomia tecnológica, tão buscada por Pequim, também é um desafio. Apesar dos avanços em inteligência artificial, robótica e energia renovável, a China ainda depende de importações para produzir chips de última geração. A guerra dos semicondutores expôs essa vulnerabilidade, forçando o país a investir pesadamente em pesquisa nacional — mas esse esforço esbarra na falta de acesso às tecnologias de base produzidas por Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Holanda.
Mesmo a estratégia diplomática da “Nova Rota da Seda” tem mostrado sinais de desgaste. A crise da dívida em países que contraíram empréstimos chineses sem retorno garantido — como Sri Lanka, Paquistão e Quênia — provocou desconfiança. Muitos governos agora buscam renegociar termos ou diversificar parceiros. O entusiasmo inicial dá lugar à cautela.
Por tudo isso, a China de Xi Jinping encontra-se diante de um dilema: como manter o ritmo de crescimento, garantir estabilidade interna e projetar poder global num contexto de pressões externas, desaceleração econômica e desafios sociais profundos? O modelo centralizador que sustentou o boom pode, paradoxalmente, tornar-se um obstáculo à adaptação e à inovação.
A história chinesa é marcada por ciclos de ascensão e colapso. Seus dirigentes sabem disso — e trabalham para evitar um novo declínio. Mas o caminho não está garantido. O império do século XXI é real, mas também frágil. E seus riscos não são apenas internos: afetam a economia mundial, os fluxos comerciais, a geopolítica e o equilíbrio de poder global.
Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.
- A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
- O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
- A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
- Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
- A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
- Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
- O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X