
A política internacional do século XXI não é feita apenas com tanques, sanções e diplomacia. Cresce, silenciosamente, o uso de uma nova ferramenta de poder: o lawfare. O termo — junção de law (lei) e warfare (guerra) — refere-se ao uso estratégico do sistema jurídico como instrumento de combate político, desestabilização institucional e interferência internacional. Mais do que disputas legais legítimas, o lawfare transforma tribunais, promotorias e investigações em armas para enfraquecer adversários e moldar cenários políticos e geopolíticos.
O conceito ganhou notoriedade nos anos 2000, mas sua aplicação é muito mais antiga. O que mudou recentemente foi a sofisticação do uso e sua disseminação em múltiplos contextos. O lawfare pode assumir várias formas: processos seletivos contra lideranças políticas, uso de delações premiadas como arma de pressão, cooperação jurídica internacional enviesada, manipulação midiática de denúncias ou a judicialização de decisões de governo com base em interpretações ampliadas da lei.
Na América Latina, os exemplos são numerosos. No Brasil, a Operação Lava Jato revelou um uso seletivo de instrumentos jurídicos contra lideranças específicas, com forte apoio da mídia e de setores do Judiciário. O vazamento de mensagens entre procuradores e juízes reforçou a percepção de que havia um conluio político por trás da perseguição judicial ao ex-presidente Lula, que acabou sendo preso em um processo que mais tarde foi anulado. Em outros países da região — como Equador, Bolívia e Argentina —, ex-presidentes enfrentaram ações judiciais que muitos analistas consideram politizadas.
Mas o lawfare não é uma exclusividade latino-americana. Na África, casos como o do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma e líderes opositores em Uganda e Zimbábue mostram como acusações judiciais podem ser usadas tanto por governos quanto por elites rivais para controlar o jogo político. Na Europa, o uso da Justiça para minar a oposição ou setores críticos também está presente em democracias frágeis, como Hungria e Polônia.
Nos Estados Unidos, embora o sistema jurídico seja mais robusto, o uso político de investigações e processos também ocorre, como se viu nas múltiplas tentativas de impeachment, nos julgamentos seletivos e nas pressões sobre agências reguladoras. O uso de sanções jurídicas contra empresas estrangeiras ou o bloqueio de ativos de países rivais — como Irã, Venezuela ou Rússia — também pode ser interpretado como formas de lawfare em escala internacional.
No plano global, o lawfare é usado por potências para deslegitimar governos, fragilizar aliados indesejáveis ou reconfigurar o equilíbrio de poder. Trata-se de uma guerra assimétrica, em que o direito, originalmente concebido como instrumento de proteção, é instrumentalizado para obter vitórias políticas sem uso direto da força.
O grande risco é que esse uso do sistema legal corroa a legitimidade da Justiça. Quando o Judiciário se torna ator político disfarçado, perde sua função como árbitro imparcial. Além disso, o lawfare enfraquece a democracia, pois substitui o debate público e o voto popular por decisões judiciais opacas, frequentemente impulsionadas por interesses externos ou elites locais.
Combater o lawfare não significa deslegitimar o uso da Justiça, mas exigir critérios claros, processos transparentes, respeito ao devido processo legal e limites à cooperação internacional enviesada. É preciso proteger a integridade do sistema jurídico — não apenas das pressões políticas, mas também das guerras travadas em seu nome.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
