ISSN 2674-8053 | Receba as atualizações dos artigos no Telegram: https://t.me/mapamundiorg

A proposta de tribunal especial para a Rússia e os riscos à ordem jurídica internacional

A criação de um tribunal especial para julgar líderes russos pelo crime de agressão na Ucrânia, formalizada em junho de 2025 por meio de um acordo entre a Ucrânia e o Conselho da Europa, representa um marco jurídico e político de grandes proporções. Embora a iniciativa busque preencher lacunas legais deixadas pela jurisdição limitada do Tribunal Penal Internacional (TPI), ela também levanta preocupações significativas sobre a coerência do direito internacional, a legitimidade das instituições multilaterais e os precedentes que pode estabelecer para o futuro da ordem jurídica global.

O acordo assinado em Estrasburgo por Volodymyr Zelensky e Alain Berset prevê a criação de um tribunal especial com competência para processar altos dirigentes russos, incluindo o presidente Vladimir Putin, pelo crime de agressão — definido como o uso da força armada contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, em violação à Carta das Nações Unidas. O tribunal pretende complementar o TPI, que não possui jurisdição para julgar este tipo específico de crime no caso da Rússia, uma vez que o país não ratificou o Estatuto de Roma.

A proposta de criar tribunais especiais para julgar crimes internacionais não é inédita. Após a Segunda Guerra Mundial, os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio foram estabelecidos para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz cometidos por líderes do Eixo. Mais recentemente, tribunais ad hoc foram criados para julgar crimes cometidos na ex-Iugoslávia e em Ruanda, ambos sob a égide do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Além disso, o Tribunal Russell, estabelecido por intelectuais como Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre, funcionou como um tribunal de opinião para julgar crimes de guerra dos Estados Unidos no Vietnã, embora sem reconhecimento oficial.

A criação do tribunal especial para a Rússia, porém, difere desses precedentes por não contar com o respaldo do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia possui poder de veto. Essa ausência de legitimidade conferida por um órgão multilateral amplamente reconhecido levanta questões sobre a imparcialidade e a universalidade do novo tribunal. Críticos argumentam que a iniciativa pode ser percebida como uma ação politicamente motivada, comprometendo a credibilidade do esforço e potencialmente minando a autoridade de instituições internacionais existentes.()

A ausência de um mandato da ONU para o tribunal especial também desafia a arquitetura legal internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial, que busca garantir que ações judiciais de alcance global sejam conduzidas sob a supervisão de organismos multilaterais. A criação de tribunais fora desse escopo pode fragmentar o sistema jurídico internacional, levando a uma multiplicidade de jurisdições concorrentes e possivelmente conflitantes.()

Além disso, estabelecer um tribunal especial sem o respaldo da ONU pode abrir precedentes para que outros países ou coalizões criem tribunais similares para julgar adversários políticos ou militares, alegando crimes de agressão ou outras violações. Isso poderia ser utilizado como ferramenta de lawfare, onde o direito é empregado como arma política, enfraquecendo ainda mais a confiança nas instituições jurídicas internacionais e tornando-as suscetíveis a manipulações por interesses particulares.

A proposta de criação de um tribunal especial para julgar líderes russos pela agressão à Ucrânia, embora motivada por um desejo legítimo de justiça, levanta questões complexas sobre a legitimidade, a imparcialidade e os potenciais impactos na ordem jurídica internacional. É essencial que qualquer iniciativa nesse sentido seja cuidadosamente considerada, garantindo que os princípios fundamentais do direito internacional sejam preservados e que não se estabeleçam precedentes que possam ser utilizados de forma indevida no futuro.