
A guerra entre Rússia e Ucrânia só terá uma paz estável se o acordo final incorporar, de modo explícito, interesses considerados vitais por Moscou. À luz da ideia de forças profundas de Jean‑Baptiste Duroselle — aquelas correntes estruturais que moldam a conduta dos Estados para além dos governos de turno —, qualquer solução que ignore geografia, demografia, economia política, memória histórica e percepções de segurança russas tende a criar apenas cessar‑fogos frágeis, facilmente revertidos por eventos previsíveis. A tese é simples: a estabilidade depende de compatibilizar o que Ucrânia e Ocidente querem com aquilo que, para a Rússia, é inegociável dentro de seu horizonte estratégico.
As forças profundas começam pela geografia. A planície que vai do Volga ao Danúbio, sem grandes barreiras naturais, historicamente convida a movimentos militares em larga escala. A Rússia internalizou, ao longo de séculos, a necessidade de amortecedores territoriais para reduzir a vulnerabilidade do coração do país. Do Grande Norte europeu a Smolensk e ao eixo que passa por Kiev e Kharkiv, o mapa empurra Moscou a preferir vizinhos neutros ou alinhados. Não é um capricho ideológico: é uma leitura estrutural do terreno. Estados podem mudar governos; montanhas e estepes não se movem. Um arranjo que transforme a Ucrânia em plataforma militar de uma aliança rival contradiz essa força geográfica e alimenta a sensação russa de cerco, gatilho recorrente de respostas preventivas.
A segunda força profunda é a segurança do mar Negro. O acesso russo a águas quentes por Sebastopol — e, por extensão, a capacidade de projetar poder e garantir rotas comerciais — compõe um núcleo duro da estratégia nacional desde o século XVIII. Disputas sobre o estatuto da Crimeia não são apenas debates jurídicos; são debates sobre logística militar, cadeias de exportação de grãos e energia e sobre a presença de potências externas em corredores críticos. Qualquer desenho de paz que ignore a centralidade do mar Negro para a economia e a segurança russa acumulará tensões que reaparecerão a cada crise regional.
A terceira força é de natureza histórica e identitária. Narrativas sobre o “mundo russo”, a origem de Kiev na formação da Rus’, o papel da vitória na Segunda Guerra e a memória de invasões ocidentais criam uma lente por meio da qual elites e opinião pública avaliam riscos. Governos passam, mas essas memórias coletivas moldam a janela do politicamente aceitável. Em Kiev, há uma narrativa simétrica de afirmação nacional e resistência à dominação russa. A política não pode apagar essas memórias; o máximo que um acordo pode fazer é acomodá‑las com fórmulas que reduzam a humilhação de ambos os lados.
A economia fecha o conjunto. Redes de oleodutos, gasodutos, portos e ferrovias conectam Rússia, Ucrânia e União Europeia. O conflito já reconfigurou mercado de energia, fertilizantes, metais e grãos, elevando custos e realocando cadeias. A Rússia busca preservar receitas externas e evitar dependências tecnológicas asfixiantes; a Ucrânia precisa de uma reconstrução que a integre a mercados rentáveis; a Europa quer segurança de suprimentos e previsibilidade de preços. Uma paz que não resolva minimamente o fluxo de commodities e transporte pelo mar Negro e por corredores terrestres europeus cria incentivos permanentes à sabotagem.
À luz dessas forças, um roteiro de estabilidade precisa deter‑se em cinco eixos. Primeiro, o vetor militar: a neutralidade armada da Ucrânia, com garantias externas e limites verificáveis para infraestrutura militar estrangeira, funciona como válvula de segurança geográfica. O debate não é se Kiev terá Forças Armadas — terá, e robustas —, mas se abrigará sistemas que Moscou lerá como ameaça existencial. O contrapeso é claro: sem a garantia de defesa externa automática, a neutralidade precisa vir com uma arquitetura de verificação e resposta rápida sob guarda‑chuva europeu e de organizações multilaterais, que desestimulem violações.
Segundo, o vetor territorial: reconhecer que a Crimeia não voltará pela força é encarar o “dado duro” da estabilidade. Isso não impede que se estabeleçam fórmulas de longo prazo — arrendamento simbólico, compromisso de não‑militarização adicional, livre trânsito de pessoas e mercadorias, estatutos especiais para minorias —, acompanhadas por uma cláusula de revisão distante no tempo. No leste, arranjos de autonomia substancial dentro da Ucrânia, com regime de cooficialidade linguística, polícia local e orçamento próprio, monitorados internacionalmente, reduzem o atrito identitário, desde que venham com retirada ordenada de meios pesados e fronteiras controladas por Kiev após cronograma de segurança.
Terceiro, o vetor político‑jurídico: é possível costurar uma anistia ampla, excetuando crimes de guerra individualizados, para evitar que ciclos de vingança inviabilizem a reintegração social. Ao mesmo tempo, é imperativo criar canais institucionais para que comunidades pró‑Rússia tenham representação estável no sistema político ucraniano — cláusulas de proteção de minorias e barreiras a mudanças constitucionais unilaterais sobre língua e educação ajudam a pacificar pautas culturais.
Quarto, o vetor econômico: sanções não podem ser apenas punidas; precisam ser transformadas em alavancas de comportamento verificável. Um mecanismo de “liberdade condicional” — alivio gradual de sanções à medida que marcos de retirada, verificação e não‑interferência forem cumpridos — alinha incentivos de todos os lados. Em paralelo, um fundo de reconstrução para a Ucrânia deve incluir salvaguardas que blindem energia, portos e grãos de retaliações comerciais. Contratos de longo prazo sob mediação internacional para exportações ucranianas e russas pelo mar Negro criam custos de ruptura suficientemente altos para desincentivar recaídas.
Quinto, o vetor de governança e monitoramento: a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, tradicionalmente subutilizada, tem experiência e instrumentos para missões de verificação e alerta precoce. Reativar a lógica de controle de armamentos convencionais na Europa — com zonas de transparência, notificações de exercícios e limites de concentração militar — reduz percepção de surpresa. Um “grupo de contato” permanente com Rússia, Ucrânia, União Europeia, Turquia e Nações Unidas cria uma mesa onde problemas táticos (trocas de prisioneiros, inspeções, incidentes no mar) não escalem para crises estratégicas.
A história comparada oferece ilustrações úteis. O sistema europeu do Congresso de Viena, em 1815, sobreviveu décadas porque, certo ou errado, incorporou interesses dos principais atores — inclusive os do derrotado França — em um concerto de potências e regras de contenção. Já a paz de 1919, ao ignorar necessidades de segurança e dignidade do perdedor, sem refrear revisionismos e crises econômicas, preparou o terreno para novo conflito. Na Ásia, a acomodação de interesses centrais de Japão e Estados Unidos depois de 1945 — com garantias de segurança e espaço para reconstrução econômica — produziu estabilidade duradoura. No continente africano, a paz entre Etiópia e Eritreia, quando ancorada em demarcação realista de fronteiras, corredores econômicos e garantias mútuas de segurança, reduziu o risco de recaída; quando esses elementos se fragilizaram, a instabilidade retornou. O padrão é consistente: acordos que integram “vontades” com “possibilidades” estruturais têm maior meia‑vida.
É importante reconhecer que os interesses vitais ucranianos também existem e precisam caber no desenho: soberania reconhecida, integridade territorial possível dentro de parâmetros de realidade, capacidade de defesa, integração econômica e proteção de identidade nacional. A tese de que a estabilidade requer observar interesses russos não é um convite à capitulação de Kiev, mas a aceitação de que nenhuma paz duradoura se sustenta contra a geografia e contra a percepção de ameaça de um ator nuclear com profundidade estratégica. Duroselle insistia que as forças profundas operam como correntes marítimas: podem ser contrariadas por um tempo, mas cobram pedágio.
A objeção mais comum a esse raciocínio é moral: por que premiar a força com concessões? A resposta, no terreno da política internacional, é pragmática. Concessões calibradas — mediadas, verificadas e reversíveis — não equivalem a legitimar agressões; equivalem a reconhecer limites de poder e a construir freios de custo‑benefício contra reincidências. O custo político de aceitar “realidades” pode ser alto no curto prazo, mas o custo humano de ignorá‑las costuma ser maior e recorrente.
A estabilização, portanto, depende de um triângulo coerente: neutralidade militar verificável, arranjos territoriais realistas e um mecanismo econômico que alinhe incentivos. Sem isso, as forças profundas continuarão a empurrar os atores de volta ao conflito: a geografia incentivará a busca por amortecedores, as memórias coletivas reagruparão ressentimentos, a economia premiará a sabotagem de rotas e a política doméstica, alimentada por perdas e lutos, produzirá líderes que prometerão “corrigir” o último acordo. Ao contrário, se os interesses russos nucleares forem contemplados em conjunto com garantias sólidas à Ucrânia, a energia dessas forças pode ser canalizada para contenção: cada parte terá a perder com a quebra, e a paz passará a ter fiadores materiais, não apenas textos.
O teste decisivo estará menos na assinatura de um documento e mais na sua engenharia. A experiência europeia de controle de armamentos e de integração econômica continental oferece repertório técnico para inspeções, quotas, zonas desmilitarizadas e fundos condicionalizados. A presença de atores regionais relevantes — em especial Turquia, peça-chave do mar Negro — pode dar tração prática. E o envolvimento de economias asiáticas como compradores de grãos e energia, com compromissos plurianuais, adiciona uma âncora extra ao sistema, ampliando o custo de qualquer tentativa de sabotagem.
Nada disso elimina a tensão entre justiça e estabilidade, nem resolve dilemas morais legítimos. Mas, do ponto de vista das forças profundas, a paz que dura é a que respeita a mecânica do tabuleiro. Se a solução final contemplar a segurança geográfica russa, o estatuto do mar Negro, um lugar para as identidades locais e um circuito econômico que remunere cooperação, a Ucrânia poderá reconstruir e a Europa, reequilibrar sua arquitetura de segurança. Ignorar essas variáveis empurra todos para um calendário de tréguas intermitentes — que é apenas outra forma de guerra.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
