ISSN 2674-8053

Polemizando: o Dilema da Grande Senhora

A Amnesty International (AI) decidiu , no último dia 11, retirar o título de Embaixadora da Consciência, que havia concedido a Aung Sang Suu Kyii, o mais alto galardão que outorga às personalidades que se destacam na defesa dos direitos humanos. Este título honroso lhe havia sido concedido em 2009. A ele sucedeu, conforme se recorda, o Nobel da Paz, em 2012.

A decisão foi-lhe comunicada, no último dia 11, por carta do secretário-geral da A I, Kumi Naidoo, que nela afirmou: “estamos profundamente desapontados por já não representar um símbolo de esperança, coragem e defesa eterna dos direitos humanos”. Não é a primeira vez que um prêmio dado a Suu Kyi é revogado nestes últimos tempos. Entre outros, foram também “para o espaço”: a sua cidadania honorária canadense; o prêmio de direitos humanos do Museu do Holocausto, de Washington; o título da Liberdade de Oxford; o prêmio da Liberdade de Edimburgo, e muitos outros. Trata-se de um verdadeiro tsunami político-ideológico contra a, até recentemente, “Heroína da Democracia”. Neste turbilhão, a agora Conselheira de Estado : este é o único título que os militares lhe permitiram após o seu partido,a “Liga Nacional pela Democracia” ter vencido as eleições gerais (e os militares) em 2015 – se transformou de “Grande Dama” em “vilã”..

O que está em causa é a percebida inação do governo de Myanmar perante o que um relatório da ONU chamou de “assassinatos em massa” e “violações coletivas”, com “intenção genocida” perpetrados pela maioria budista do país contra os “rohingyas”, no ano passado. Os Rohingyas são, como se sabe, a minoria muçulmana que habita a região de Rakhine na costa ocidental de Myanmar, levada ,pelos colonizadores britânicos, da vizinha Bangladesh, sobretudo no final do século XIX e início do XX, para servir de “coolies” nas plantações de chá da então Birmânia (estas origens são, porém, contestadas). Eles hoje representam cerca de 5% dos 60 milhões de habitantes do país, Outros 800 mil encontram-se asilados nos campos de refugiados em Bangladesh, em frente ao Golfo de Bengala, que limita por mar e por terra os dois vizinhos: muçulmanos, em Bangladesh, e budistas em Myanmar.

A crise que assola endemicamente o estado de Rakhine é uma das mais longas do mundo e também uma das mais negligenciadas. O diagnóstico, feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), levou a ONU a aprovar uma resolução em dezembro de 2014 que exortava Myanmar a permitir o acesso à cidadania para a minoria, classificada de, forma geral, como apátrida. No país, eles são proibidos de se casar ou de viajar sem a permissão das autoridades e não têm o direito de possuir terra ou propriedade.Possuem apenas o passaporte de apátrida, que a ONU lhes concede.

Bem….Suu Kyi é mocinha ou bandida????

Numa leitura “rasa” somos levados a acusá-la e a demonizá-la. Mas, vamos por partes…Toda moeda tem um verso e um anverso…Eu servi nos dois lados do Golfo de Bengala, em Bangladesh e em Myanmar, e pude escutar, então, as duas versões para o drama (este real) dos rohingyas.

Vamos primeiramente buscar entender as razões de Suu Kyi: filha do fundador de Myanmar, o General Aung Sang, o grande líder nacional responsável pela independência da então Birmânia do Raj Britânico, Suu Kyi tem-se batido incansavelmente pela preservação da democracia num país que desde 1962 e até 2015 foi feudo dos militares, com todos os desmandos e a opressão sangrenta que o regime, tirano e corrupto, impôs à população indefesa. A voz da resistência, então, concentrou-se na Grande Dama e na comunidade budista (Myanmar é 90% budista), que viveram momentos traumáticos na luta pela independência: Suu Kyi recolhida em prisão domiciliar durante 15 anos e os monges, seus apoiadores, imolando-se em frente da sua residência. Não fora o apoio inarredável da população budista, Myanmar estaria ainda hoje sob o jugo dos militares. Suu Kyi é, em definitivo, isto: a figura emblemática e a única possibilidade de se consolidar a democracia, ainda fragilíssima!

Por esta razão, principalmente, estou seguro, ela não tomou o partido dos rohingyas. Tem-se mantido calada. Sua “escolha de Sofia”: 1) apoiar os rohingyas e perder a confiança – e o apoio – da população budista, que rechaça com veemência a presença dos “muçulmanos terroristas” no seu solo,e com isto abrir espaço para o retorno dos militares ao poder; ou 2) não responder às críticas da comunidade internacional, pagando um alto preço em termos de prestígio, mas salvaguardando a consolidação da democracia em Myanmar, pelo que ela sempre lutou.

Do outro lado do Golfo de Bengala, a Primeira-Ministra de Bangladesh, Sheik Hasina, enfrenta dilema similar: é acusada de insensibilidade diante do martírio que seus irmãos de fé estão sofrendo do outro lado do golfo, e que ao buscarem nos barcos à deriva pelo Mar de Bengala, asilo nas praias bengalesas, são imediatamente rechaçados e reembarcados em direção a sabe-se lá onde…Esforço em vão: o superpopuloso e pobre Bangladesh não tem condições de acolher mais ninguém: basta os 800 mil rohingyas que já (sobre)vivem nos seus campos de refugiados!

Enquanto isto, a comunidade internacional acusa… e acusa, mas não toma nenhuma providência além de criticar, com a acrimônia de quem não está com a “batata quente” para descascar…Qual é a solução, se é que há alguma?…

Maldito colonialismo…

Sugiro aos amigos que leiam a (curta) matéria, em contraponto a este longuíssimo texto…(sorry) ..rsrsrs

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.