ISSN 2674-8053

A presença chinesa na agricultura africana – “invasão” ou cooperação?

O objetivo deste estudo é avaliar a presença chinesa na agricultura africana à luz do aumento das discussões sobre uma suposta “invasão” chinesa por meio da compra de terras agricultáveis. Estudos científicos prévios e os poucos dados existentes e confiáveis indicam que não há indícios claros de uma “invasão” chinesa na África, ainda que o interesse dos chineses pela agricultura em solo africano tenha de facto aumentado neste século. Por outro lado, as ajudas e os mecanismos de cooperação técnica aumentaram substancialmente desde o início do século XXI. Parece haver espaço, pois, para parcerias que colaborem com a redução da subnutrição na África a partir da utilização da tecnologia e do know-how chinês. Até o presente momento, pouca evidência existe também sobre a ocupação de terras no continente africano para garantir a segurança alimentar na China.

  1. MITOS E REALIDADES

A presença chinesa na África remonta ao início dos anos 1950. É a partir desta década que a China estabelece as primeiras relações diplomáticas por intermédio de acordos bilaterais com alguns países africanos. Inclusive, durante o período de independência de boa parte dos países da África – fim da década de 1950 até 1980, maioritariamente –, a China ofereceu suporte a grupos independentistas como a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) em Angola e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) em Moçambique, além de reconhecer rapidamente a independência de alguns países, como foi o caso da Argélia em 1958 (Lagerkvist, 2014; Lafargue, 2005).

No que se refere às ajudas chinesas aos países do continente africano já na década de 1960 o país asiático possuía programas estabelecidos de apoio técnico e financeiro, inclusive com o envio de profissionais chineses ao continente africano para supervisionar os projetos, porém à época poucos eram os investimentos em compra de terras agricultáveis (Brautigam, 2015). Interessante notar, neste sentido, que a agricultura chinesa era extremamente rudimentar até meados da segunda metade do século XX e mesmo assim a China já possuía alguns projetos relacionados à atividade agrícola no exterior, nomeadamente projetos de cooperação técnica e financeira, ainda que em uma escala substancialmente inferior ao que possui atualmente.

De forma geral, a atuação chinesa na agricultura africana pouca curiosidade – acadêmica ou jornalística – despertou até o início do século XXI. É a partir de 2006 que começa o interesse da imprensa e dos meios político e acadêmico pela presença chinesa no continente africano por meio da aquisição de terras agricultáveis, quando inúmeros artigos sobre o tema foram publicados em jornais e revistas do mundo ocidental, praticamente formando uma espécie de consenso sobre uma suposta “invasão” chinesa na África, ainda que boa parte dos materiais produzidos não tivessem evidências científicas (Brautigam, 2015; Ado e Su, 2014).

É facto que depois de duas décadas – 1980 e 1990 – com poucos projetos e investimentos relevantes por parte dos chineses, o início dos anos 2000 viu o florescimento – ou ao menos a perspectiva gerada – de investimentos chineses na agricultura africana, assim como o aumento substancial da cooperação técnica e ajuda aos países e organizações africanas.

No entanto, parece relevante abordar o estudo realizado por Brautigam (2015), no qual a autora procura desconstruir muitos dos supostos mitos reverberados sobre o tema, entre eles:

  1. que a China comprou áreas imensas de fazendas na África – ainda que haja um crescente interesse por investimentos em solo africano por parte de empresas de agronegócios chinesas isso não significa em aquisições efetivas e significativas de terras até o presente momento. Muitos investimentos anunciados terminam por não se efetivar em função de problemas operacionais e da dura realidade de se fazer negócios na África. No entanto, o número de empresas estatais, privadas e indivíduos chineses que enxergam possibilidades de negócios na África é crescente, o que significa que as aquisições de terras muito provavelmente irão crescer em um futuro próximo.
  2. que existe um grande plano do Estado chinês por trás das compras de terras – estes investimentos geralmente fazem parte de um papel ativo e específico para o governo chinês, com participação crescente dos governos provinciais neste tema – os governos provinciais chineses têm autonomia para fazer relações económicas internacionais. A tese da autora é de que este papel do governo deve ser visto dentro da ótica geral do “going global”, com o governo atuando no papel de estado desenvolvimentista, seguindo o que se passou com Japão e Coreia do Sul e não especificamente como uma grande concertação para a tomada do território africano.
  3. que existe um apetite voraz dos chineses pelos grãos africanos no sentido de exportá-los para a China – grande parte dos investimentos chineses em agricultura são focados no mercado interno dos países africanos ou são exportados como commodities internacionais que são. Segurança alimentar chinesa não pode ser deixada de lado, neste contexto, mas claramente não é o primeiro incentivo para estes investimentos.
  4. que a China está enviando grande contingente de cidadãos no sentido de resolver o seu problema interno de privação de terras – não há evidência de um plano organizado para “exportar” chineses para a África. Antes, em geral, são privados – sem participação do Estado chinês – e sem experiência prévia em agricultura.

Sobre o tamanho e relevância dos investimentos chineses na agricultura africana, Kuteleva (2016) clarifica, com base em relatório do Ministério da Agricultura Chinês, que, em todo o mundo, as empresas chinesas – sejam elas privadas ou estatais – possuíam em 2014 aproximadamente 300 projetos relacionados à agricultura em 46 países, muitos deles no continente africano. Ainda conforme Kuteleva (2016), o total de hectares cultivados por empresas chinesas fora do território nacional é ligeiramente superior a 200 mil hectares, portante substancialmente abaixo das estimativas feitas por organizações não governamentais (ONGs) como  a Land Matrix e a Via Campesina.

Brautigam (2015), por sua vez, afirma que apenas 2% do total das terras que supostamente estariam nas mãos dos chineses na África de facto estão. Ilustrativamente, é o mesmo que dizer que as empresas chinesas teriam a quantidade de terras em solo africano equivalente ao tamanho de duas cidades de Nova Iorque.

Lisk (2013) apresenta outra estimativa que sugere que entre 3 e 5% (3 milhões de hectares sobre um total que varia entre 80 e 130 milhões) das terras transferidas para estrangeiros na África foram para empresas de países do Leste Asiático. Em número de projetos, a China é mais da metade dos empreendimentos dos países asiáticos, porém em termos de quantidade de terras adquiridas o país está situado atrás da Coreia do Sul, Singapura e Malásia, países estes com pouca atenção da imprensa, políticos e meio acadêmico neste tema.

Ou seja, diferentemente do que é usualmente exposto, especialmente pela imprensa ocidental, a China ainda parece ser um player relativamente pequeno em termos de quantidade de terras adquiridas na África. Isto não quer dizer, no entanto, que o país não venha ganhando importância nos últimos anos e que muito possivelmente desempenhará um papel relevante no total de terras cedidas a estrangeiros na África nas próximas décadas.

Nesta linha, Chan (2014) indica que como resultado da crise global de 2008 e aumento substancial do preço dos alimentos, a China tem encorajado empresas chinesas a comprar terras no exterior ou obter concessões de terras, dentro da ótica de going global. Este autor cita a competição por terras com outros países como Japão, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, todos eles com recursos naturais limitados.

No entanto, muito do suposto interesse chinês acaba por não se realizar pois esbarra em fatores como dificuldade de compreensão cultural de parte a parte, dificuldades de acesso, presença de grupos guerrilheiros, divergência tecnológica, problemas de comunicação, entraves políticos e institucionais, falta de transparência, entre tantos outros problemas que acabam por dificultar a realização efetiva dos projetos (Buckley et al, 2017; Brautigam, 2015; Lisk 2013; Lafargue, 2005). Pelo lado dos africanos, as principais críticas são problemas em cumprir as regras por parte dos chineses e salários baixos (Mai e Wilhelm, 2012).

Em relação ao argumento sobre a compra de terras na África para garantir a segurança alimentar chinesa via exportações diretas das colheitas em solo africano poucas são as evidências da ocorrência deste fenômeno. As estatísticas de comércio demonstram que a África não está alimentando a China (Brautigam, 2015). Um exemplo latente desta afirmação é o facto de que os três principais produtos exportados pela África no período colonial continuam a ser os mais relevantes da pauta exportadora africana, a saber: café não processado, algodão e cacau, produtos estes que os chineses, para além de não terem grandes conhecimentos e participação no mercado mundial, não tem o hábito nem a necessidade de consumo, diferentemente, por exemplo, do arroz e do milho, fundamentais na dieta chinesa.

Ainda que a China já seja um dos principais parceiros comerciais de alguns países africanos, o comércio é proporcionalmente pequeno – menos de 10% no geral das exportações africanas –, ainda que crescente, sendo que a China exporta mais para a África do que o contrário.

O que parece ficar claro, isto sim, é que, independentemente da destinação dada às colheitas em solo africano, os investimentos diretos chineses na África parecem ser baseados maioritariamente na busca de recursos naturais, vide os diversos investimentos relacionados no setor de energia – petróleo e gás – e alguns outros em agricultura (Akhtaruzzaman et al, 2017; Lafargue, 2005).

  • AJUDA, COOPERAÇÃO TÉCNICA E MARCO REGULATÓRIO

Referente à ajuda e cooperação técnica chinesa com países e organizações regionais africanas, aqui sim pode-se dizer que houve um incremento substancial na destinação de recursos nestes últimos anos. Em linhas gerais, a ajuda começou na década de 1950 e se intensificou nas décadas de 1970 e 1980, muito em função da competição diplomática entre o sistema comunista chinês e o sistema capitalista implementado em Taiwan (Xu et al, 2016).

Conforme mencionado anteriormente, já na década de 1960 a China passou a enviar regularmente especialistas em agricultura, que basicamente reproduziam modos de atuação existentes na China (Xu et al, 2016).

Facto é que a partir dos anos 2000 a China passou a dedicar muito mais atenção ao tema da ajuda e cooperação técnica, fundando os primeiros Agricultural Training and Development Center (ATDC) no ano de 2006, partindo do pressuposto e do discurso de que o paradoxo para a grande disponibilidade de terras na África em coexistência com insegurança alimentar era primordialmente causado pela falta de tecnologia. Desde então, os 23 ATDCs são a principal bandeira de cooperação entre a China e a África (Xu et al, 2016; Brautigam, 2015).

Os ATDCs funcionam como mecanismo real de transferência de tecnologia ao mesmo tempo que ajudam a difundir inúmeras empresas de tecnologia chinesas, naquilo que tanto o governo chinês como os governos locais na África consideram em geral como uma relação de benefício mútuo (ganha-ganha) (Xu et al, 2016; Brautigam, 2015).

Também relevantes como mecanismo de ajuda são os recorrentes cancelamentos por parte da China de dívidas que alguns países africanos têm com o país asiático. Se para a China estas dívidas são irrisórias em relação à sua capacidade fiscal, para alguns governos africanos são muitas vezes recursos que permitem “sobreviver algum tempo mais” (Brautigam, 2015; Lagerkvist, 2014).

Sobre a perceção gerada acerca da presença chinesa na África, Chan (2014) conclui que tanto os investimentos como as ajudas chinesas devem ser vistas a partir de dois prismas distintos, isto é, não é nem 100% altruísta tampouco 100% predatória.

Isto porque por mais que a China persiga esta estratégia de going global e por mais que, a princípio, os investimentos e ajudas feitos na África não visam primordialmente garantir a segurança alimentar chinesa, sempre haverá interesses económicos e políticos “em jogo” potencialmente ocultos.

Todavia, é importante ressaltar, a China também busca se legitimar no sistema internacional, a partir da construção da imagem de uma potência global que tem as atenções voltadas também para os demais países em desenvolvimento. Por isso, passar por uma espécie de teste de sinceridade em relação às suas ambições – por exemplo, exportar as colheitas em solo africano para a China ou não – possa ser importante para a estratégia de consolidação da reputação chinesa no sistema internacional (Duggan e Naarajarvi, 2015; Chan, 2014).

Nesta linha, Chan (2014) menciona o exemplo de investimentos chineses em petróleo do Sudão em que boa parte do petróleo é vendido no mercado internacional, refutando assim a ideia de que a real motivação chinesa na África é garantir sua própria segurança energética – e, por inferência, no caso deste estudo, sua própria segurança alimentar.

No entanto, mesmo com todas as ações de cooperação, subsistem inúmeros detratores da presença chinesa na África. É, por exemplo, o caso citado por Kuteleva (2016) do governador do Banco Central Nigeriano que sugere que a China deixou de ser um país companheiro de uma economia subdesenvolvida e passou a adotar formas de exploração semelhantes às empregadas pelos países ocidentais, o que levaria à desindustrialização e perpetuação do subdesenvolvimento na África. Como esta, há inúmeras outras afirmações maldizendo a presença chinesa na África.

Brautigam (2015) indica que para muitos africanos e africanistas o investimento comercial e em larga escala na agricultura é controverso, especialmente no contexto do continente. O debate vai muito além da deslocação de populações locais supostamente causada pela compra de terras pelos chineses. Tem mais a ver com o efeito destes investimentos na economia, que para muitos não gera as vantagens prometidas, mesmo para a segurança alimentar local e a redução da pobreza.

Alguns especialistas sugerem que o empoderamento dos pequenos produtores africanos talvez seja a única saída possível, o que é altamente discutível, uma vez que a conformação atual da agricultura mundial exige a constante evolução da produtividade por meio de inovações tecnológicas que dificilmente seriam disponibilizadas a estes pequenos agricultores sem qualquer tipo de apoio externo.

Outro tema recorrentemente associado ao “land grabbing” é a questão da posse das terras. Chan (2014) cita o exemplo de um projeto no Zimbábue em que foi definida uma nova lei de terras no país de forma a gerar supostos benefícios aos chineses, o que pode levar a discussões sobre o grau de soberania dos países e a necessidade de investimento (Lisk, 2013).

Por outro lado, como também argumenta Brautigam (2015), não são poucos os especialistas que enxergam inúmeras vantagens na presença de empresas chineses com poder econômico, uma vez que em geral adotam o modelo de economias de escala e integração vertical, além de muitas vezes utilizarem o sistema de contract farming, fomentando assim os pequenos produtores locais e integrando a cadeia de valor.

Nesta linha, a própria experiência de sucesso vivida na China a partir dos anos 1980 com a empresa tailandesa processadora de frangos CP Foods parece ser o modelo escolhido por algumas companhias chineses que estão desenvolvendo projetos agrícolas na África (Brautigam, 2015).

Em relação aos mecanismos institucionais criados para facilitar a cooperação e o diálogo entre africanos e chineses destaca-se o Forum on China and Africa Cooperation (FOCAC) criado em 2006 e que tem como principal objetivo ajudar a criar economias de escala nos temas relacionados aos pedidos de ajudas, feiras, entre outros temas. A ideia é transformar o foco da cooperação em “mais negócio e menos ajuda”. O FOCAC patrocinou o China Investment Roadmap em 2006 e os ATDCs são resultados das políticas propostas no âmbito deste fórum (Brautigam, 2015).

Também foi criado em 2007 o China-Africa Development Fund (CAD Fund), o qual tem como finalidade apoiar projetos chineses no continente africano (Mai e Wilhelm, 2012). Segundo Chan (2014), apenas em 2008 mais de 5 bilhões de dólares foram destinados para projetos de produção de alimentos por um período de 50 anos na África.

É o caso também do convênio assinado entre o Ministério da Agricultura Chinês e o Banco de Desenvolvimento Chinês (CDB) para potencializar a agricultura, sendo passível de empréstimos projetos relacionados à modernização tecnológica, logística e desenvolvimento de “água e terra” no estrangeiro (Brautigam, 2015).

No final de 2008, o mesmo Ministério da Agricultura e o Eximbank assinaram um acordo que previa 8 bilhões de dólares para financiar a agricultura globalmente (empresas chinesas).

CDB e Eximbank estão oferecendo também maiores volumes de empréstimos atualmente aos governos africanos para que os próprios possam investir em suas respectivas agriculturas.  (Brautigam, 2015).

O governo chinês ainda estabeleceu em 2011 o chamado White Paper on Economic and Trade Cooperation between China and Africa que, como o próprio nome já sugere, traça diretrizes para a cooperação económica e comercial entre China e África. O documento é explícito ao mencionar que a visão oficial do governo chines é ajudar a África a resolver seu problema de segurança alimentar, sendo a principal meta da cooperação agrícola China-Africa (Chan, 2014).

Interessante que, diferentemente da maioria dos países ocidentais que fazem exigências em relação ao sistema político como condicionantes para alguns tipos de ajudas e empréstimos, um dos fatores que tem potencializado a presença chinesa neste campo é o facto de que a China não faz restrições de cunho ideológico ou político. A única condicionante chinesa é que o país que recebe a ajuda ou empréstimo deve cortar relações diplomáticas com Taiwan (De Bruyn, 2016; Chan, 2014; Mai e Wilhelm, 2012; Lafargue, 2005).

Enfim, de facto este início de século viu florescer diversos organismos, instituições e mecanismos de apoio ao desenvolvimento das relações da China com a África, assim como o desenvolvimento da agricultura em solo africano.

  • BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS[1]

Do ponto de vista da correlação da presença da China na África com as distintas teorias das Relações Internacionais, parece ser importante apresentar duas visões que podem ser utilizadas concomitantemente, ainda que partam de pressupostos razoavelmente distintos.

A primeira delas é o (neo) realismo e que tem entre seus principais expoentes acadêmicos John Mearsheimer, autor que ficou conhecido pela abordagem do realismo ofensivo que sugere que a estrutura básica do sistema internacional força os Estados preocupados com sua segurança a competir com outros Estados pelo poder, sendo que o objetivo final é justamente maximizar a porção de poder mundial detida e eventualmente dominar o sistema (Mearsheimer, 2014).

Pode parecer absurdo considerar que a presença chinesa na África seja motivada por este tipo de ação maximizadora de poder, mas não se deve esquecer que a China tem vindo cada vez mais a aumentar sua participação em agendas que anteriormente sequer dava atenção. Além do mais, o desconhecimento ocidental sobre o modo de pensar chinês pode ao mesmo tempo levar a interpretações errôneas sobre as suas reais motivações assim como subestimar o interesse estratégico chinês.

Obviamente que isto passa um pouco por especulação, mas nunca é demais lembrar que a África sempre foi um campo de batalha para as potências mundiais e o facto de a China estar cada vez mais presente no continente pode ser um sinal de que a China efetivamente quer “fazer parte do jogo”, ainda que, como vimos anteriormente, não parecer haver um ideal fixo e centralizado por parte do Governo chinês em “ocupar a África”.

Mearsheimer (2014) argumenta que a China talvez seja a única grande força capaz de alterar a arquitetura de poder global e que, da mesma maneira que os EUA fizeram com o hemisfério ocidental, a China buscará fazer em sua zona de influência e talvez os chineses considerem a África como uma região naturalmente sob sua influência.

Por sua vez, o (neo)liberalismo também pode ser utilizado neste contexto. Keohane e Nye (1987) são dois dos principais autores desta escola de pensamento que basicamente entende que existe uma interdependência complexa e multidimensional entre economia, sociedade e ecologia e que o uso da força tem se tornado cada vez mais custoso e que por isso a cooperação pode ser um caminho interessante para a sociedade internacional.

Neste sentido, algumas das ações chinesas no continente africano parecem encontrar eco nos preceitos teóricos do (neo)liberalismo, como é o caso da ajuda financeira, a construção dos ATDCs, os diversos projetos de cooperação técnica, entre outros, que ajudam a criar uma narrativa importante para a presença chinesa na África.

O facto de a China estar participando de operações de manutenção da paz no continente africano é um outro exemplo do comportamento diplomático chinês no sentido de conseguir certa legitimidade.

De qualquer forma, parece pouco provável que apenas uma escola de pensamento possa explicar este fenômeno, ainda mais se tratando da China e de sua gigantesca complexidade.

  • COMENTÁRIOS FINAIS

Estima-me que 600 milhões de hectares não são cultivados atualmente na África, o que significa 2/3 da terra arável disponível no mundo (Lisk, 2013). Também se sabe que a capacidade produtiva da China é limitada em função da pequena disponibilidade de terra e água.

Por sua vez, por seus próprios meios muito possivelmente a agricultura africana não conseguirá atingir os níveis de produtividade necessários para garantir a segurança alimentar, seja de onde for. Prova disto é – a despeito de iniciativas isoladas ou mesmo algumas poucas coordenadas – o facto de que a África produz os mesmos níveis per capita de há 30 anos atrás, com pouca evolução estrutural de sua produtividade agrícola.

Não houve – em escala significativa – melhorias substanciais em infraestrutura e no marco legal dos países africanos, o que dificulta a concretização de projetos agrícolas autóctones e também os estrangeiros.

Por outro lado, a China desenvolveu-se no setor agrícola de maneira impressionante neste mesmo período – por mais que muito ainda necessita ser feito neste sentido – e possui fontes importantes de financiamento e mesmo de ajuda.

Este cenário sugere que parcerias no setor agrícola podem de facto ser benéficas para ambas as partes. Tudo depende da maneira como estas parcerias são organizadas e nas relações de força existentes entre os atores envolvidos. Por exemplo, parcerias que possam desenvolver os produtores locais, agregar tecnologia, estabelecer novos métodos de produção e gerar produtos a preços acessíveis para serem vendidos no mercado doméstico africano – colaborando para a segurança alimentar do continente – e mesmo exportados – gerando divisas importantes para os países – parecem ser determinantes para o desenvolvimento da agricultura africana e, consequentemente, das economias locais.

Os indícios apresentados neste texto sugerem que não existe uma “invasão” chinesa em busca de terras agricultáveis na África, assim como não há como provar a hipótese de que a China está comprando terras na África para garantir a sua própria segurança alimentar, como pudemos ver pelos dados de comércio entre as duas “regiões”.

A segurança alimentar continuará a ser um tema relevante nestas duas geografias e um modelo de desenvolvimento conjunto pode ser parte da solução em diminuir a subnutrição que afeta mais de 200 milhões de africanos.

A China é um dos poucos países, ao lado do Brasil, por exemplo, que podem ajudar na criação de um sistema mais equilibrado de governança dos alimentos.

Também se pode concluir que o incremento substancial nos mecanismos e instituições de cooperação, ajuda e financiamento muito possivelmente ajudarão para o estabelecimento de novos projetos chineses na África, a despeito de todas as dificuldades inerentes a estes tipos de projetos.

Do ponto de vista político, o país asiático, diferentemente dos países ocidentais em geral, não faz grandes exigências para o estabelecimento de parcerias e ajudas, sendo o grande diferencial da China em relação a maior parte das potências globais, o que também sugere uma tendência de aumento da cooperação e de projetos em comum entre africanos e chineses.

Talvez só o tempo dirá se a presença chinesa na África está mais próxima do velho colonialismo ou de uma nova forma de cooperação Sul-Sul. Ou mesmo se os efeitos negativos serão maiores ou menores que os efeitos positivos.

Por hora é temerário emitir juízos. E por isto alguns caminhos futuros de investigação podem centrar-se em mensurações mais científicas sobre o impacto de projetos agrícolas na África liderados pelos chineses e o impacto na China da internacionalização de suas empresas agrícolas para a segurança alimentar do próprio país.

O certo é que o tema muito possivelmente continuará relevante nos próximos anos e conhecê-lo melhor e despido de preconceitos parece ser um bom começo para avançar cientificamente na busca de benefícios mútuos que ajudem a combater a insegurança alimentar que persiste em atrapalhar o desenvolvimento económico e humano de milhões de pessoas nestas duas “regiões”.

BIBLIOGRAFIA

Ado, A. and Su, Z. China in Africa: a critical literature review (2016). Critical Perspectives on International Business. Volume: 1 Issue: 1 Pages: 40-60

Akhtaruzzman, M. et al. Confucius Institutes and FDI flows from China to Africa (2017). China Economic Review. Volume: 44 Pages: 241-252

Brautigam, D. Will Africa feed China? (2015). Oxford: Oxford University Press

Buckley et al. Chinese Agriculture in Africa (2017). Discussion Paper IIED. London: IIED

De Bruyn, T. ‘New friends, easier partners and bigger brothers’: The influence of the emerging powers on agriculture and food security in Malawi (2016). South African Journal of International Affairs. Volume: 23 Issue: 1 Pages: 39-68

Duggan, N. and Naarajarvi, T. China in Global Food Security Governance (2015). Journal of Contemporary China. Volume: 24 Issue: 95 Pages 943 – 960

Keohane, R. and Nye, J. Power and Interdependence revisited. International Organization (1987). Volume: 41 Issue: 4 Pages 725 – 753

Kuteleva, A. China’s Food Security Situation: Key Issues and Implications for Canada (2016). Occasion Paper Series China Institute. Volume: 3 Issue: 1 Pages: 1-24 

Lafargue, F. China’s Presence in Africa (2005). China Perspectives. Volume: 61 Pages: 1-11

Lagerkvist, J. As China Returns: Perceptions of Land Grabbing and Spatial Power Relations in Mozambique (2014). Journal of Asian and African Studies. Volume: 49 Issue: 3 Pages: 251 – 266

Lisk, F. ‘Land grabbing’ or harnessing of development potential in agriculture? East Asia’s land-based investments in Africa (2013). Pacific Review. Volume: 26 Issue: 5 Pages: 563-587

Mai, X. e Wilhelm, P. Evidence of China’s Aid to Africa and the Outlook on Sino-African Development (2012). CF. Volume: 10 Issue: 2 Pages 141-146

Mearsheimer, J. Can China rise Peacefully in The Tragedy of the Great Power Politics (2014). New York: W. W. Norton & Company

Xu, X. et al. Science, Technology, and the Politics of Knowledge: The Case of China’s Agricultural Technology Demonstration Centers in Africa. World Development (2016). Volume 81, Pages 82 – 91


[1] Não se pretende neste trabalho abordar os aspectos mais teóricos das distintas correntes de pensamento das Relações Internacionais, mas sim utilizar alguns poucos conceitos para enquadrar a presença chinesa na África.

Luis Renato Rua
Doutorando do Programa Global Studies da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Economia Internacional pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP/UP), Pós-Graduado em Agronegócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (ESALQ/USP) e Graduado em Relações Internacionais pela FACAMP e também em Economia pela FACAMP.
Desempenhou funções como Gerente de Relações Corporativas da BRF S.A. para a América Latina (com sede na Argentina), tendo sido também Vice-Presidente do Departamento de Comércio Internacional da Câmara de Comércio Brasil-Argentina (CAMBRAS) e Diretor do Grupo Brasil.
Entre os seus temas de interesse, destacam-se o comércio internacional, o desenvolvimento do agronegócio, as questões relacionadas à segurança alimentar e à sustentabilidade, a coordenação das cadeias globais de valor e a geopolítica dos alimentos.